Introdução: O Chamado Divino à Humildade
Diante da majestade e santidade de Deus, o profeta Miquéias destila a essência da vida piedosa em uma única e profunda exortação: “que pratiques a justiça, e ames a beneficência, e andes humildemente com o teu Deus” (Miquéias 6:8). Este chamado ressoa em contraste direto com a tendência humana natural, magistralmente descrita pelo teólogo puritano John Owen.
Quando confrontado com a convicção do pecado, o coração humano, em seu pânico e orgulho, busca apaziguar a Deus por meio de obras e sacrifícios auto-idealizados. Propõe “milhares de carneiros” ou mesmo o sacrifício horrendo do “primogênito”, em uma tentativa desesperada de construir uma ponte sobre o abismo criado pela transgressão. Owen nos ensina que este é um erro fundamental. A resposta de Deus não é um convite à barganha, mas um chamado à comunhão. Este ensaio explorará a profunda instrução de Owen sobre o que significa verdadeiramente "andar humildemente com o teu Deus", dissecando os dois pilares fundamentais sobre os quais essa caminhada se assenta: a submissão à lei da graça e a submissão à lei da providência.
1. O Fundamento da Caminhada: Pré-requisitos para a Comunhão com Deus
É de importância estratégica compreender que "andar com Deus" não é um esforço casual ou um empreendimento presunçoso, mas uma comunhão deliberada que exige pré-condições divinamente estabelecidas. Antes que a alma possa dar o primeiro passo neste caminho sagrado, certos fundamentos devem ser firmemente estabelecidos. Não nos enganemos: sem estes, toda a nossa religião não passa de um labor no fogo. Esta seção analisará os requisitos essenciais que, segundo a análise de Owen, tornam essa caminhada não apenas possível, mas também aceitável aos olhos de Deus.
1.1. Paz e Acordo Através do Sacrifício
Baseado na pergunta retórica do profeta Amós — "Porventura andarão dois juntos, se não estiverem de acordo?" (Amós 3:3) — Owen afirma que a paz com Deus é o pré-requisito indispensável para andar com Ele. Essa paz, no entanto, não é um sentimento subjetivo alcançado por esforços humanos, mas uma realidade objetiva fundamentada exclusivamente na obra de Cristo, que é a "nossa paz" (Efésios 2:14). Tentar se aproximar de Deus sem essa paz reconciliadora é um ato de profunda presunção. Owen adverte que, para aqueles que não estão em aliança com Deus através do sangue de Cristo, todas as suas obras são inúteis, como "os dons de inimigos, que são egoístas, enganosos e, de todas as coisas, a serem abominados". Aos olhos de Deus, tal obediência não é comunhão, mas uma provocação. É o ato de um "rebelde ousado e presunçoso" que se impõe à companhia de Alguém com quem está em inimizade, e que a qualquer momento pode rasgá-lo em pedaços.
1.2. Unidade de Propósito: A Glória da Graça Divina
Uma verdadeira caminhada com Deus exige uma unidade de desígnio. Não basta simplesmente caminhar na mesma direção; é preciso compartilhar o mesmo propósito. Owen destila os dois grandes objetivos de Deus nesta jornada com o crente: primeiro, a exaltação de Sua gloriosa graça, e segundo, o gozo do próprio Deus como a recompensa final e supereminente do crente. É esta a promessa fundamental sobre a qual a aliança se baseia, quando Deus chama Abraão para andar diante dEle: "Eu sou o teu escudo, o teu grandíssimo galardão" (Gênesis 15:1). Em contraste direto, Owen expõe os motivos indignos que frequentemente impulsionam a religiosidade humana: o costume, o ganho terreno, a reputação ou a mera satisfação da consciência. Quando a obediência é motivada por tais fins egoístas, ela deixa de ser uma caminhada com Deus e se transforma em uma forma sutil de oposição a Ele.
1.3. O Princípio Vital: Uma Nova Vida em Cristo
Com uma analogia simples e poderosa, Owen ressalta a impossibilidade de um homem morto andar. Para que haja uma caminhada espiritual, deve haver um princípio de vida espiritual. A obediência aceitável a Deus não pode ser um movimento mecânico; deve emanar de uma nova natureza, de um coração vivificado pelo Espírito de Cristo. Owen observa que muitos são movidos em seus deveres religiosos por forças externas — costume, medo do inferno, reputação ou autojustiça — em vez de um princípio de vida interior. Tais movimentos, embora possam ter a aparência de piedade, são para Deus uma "carcaça morta". Considere, leitor: "Não preferiria um homem andar sozinho, a ter uma carcaça morta, tirada de uma sepultura, e movida por uma força e poder externos, para acompanhá-lo?". Assim é, para Deus, a obediência desprovida da vida que flui de Cristo.
Estabelecidos esses fundamentos — a paz com Deus, a unidade de propósito e um princípio de vida nova — torna-se possível examinar a natureza da obediência que constitui a própria caminhada humilde, uma caminhada cujo peso eterno não podemos ignorar.
2. O Coração da Humildade: Submissão à Lei da Graça de Deus
John Owen apresenta a "lei da graça" não como uma sugestão, mas como a constituição inalterável da nova aliança, o sistema operacional que governa a relação entre Deus e o pecador redimido. Humilhar-se a essa lei significa abandonar completamente a mentalidade de autojustificação e abraçar os paradoxos do evangelho. É um passo de submissão que muitos, como os fariseus do tempo de Cristo, falharam em dar. Eles tinham zelo por Deus e buscavam a justiça, mas, como afirma Owen, "não se submeteram à justiça de Deus", preferindo estabelecer a sua própria. Andar humildemente com Deus, portanto, começa com uma capitulação incondicional aos termos da Sua graça soberana.
2.1. Renunciando a Si Mesmo: O Ponto de Partida da Perdição
O primeiro e mais fundamental requisito da humildade perante a lei da graça, segundo Owen, é que o crente fundamente toda a sua obediência no reconhecimento de si mesmo como uma criatura "perdida, desfeita, um objeto de ira". Esta não é uma mera confissão teórica, mas uma convicção profunda que molda toda a sua aproximação de Deus. Ecoa as palavras de Cristo: "Eu não vim chamar os justos, mas, sim, os pecadores" (Mateus 9:13), e encontra seu testemunho supremo no apóstolo Paulo: "Cristo Jesus veio ao mundo, para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal" (1 Timóteo 1:15). A falha em se humilhar a este ponto de partida — a própria condição de perdição — inevitavelmente leva a pessoa a confiar, ainda que sutilmente, em sua própria força e mérito, lançando as bases de sua obediência sobre um "lodaçal" de autojustiça.
2.2. Abraçando a Justiça Alheia: O Paradoxo do Evangelho
Aqui reside um dos maiores desafios para o orgulho humano. Owen articula a profunda exigência de que o crente, mesmo no auge de sua obediência e santidade, deve aceitar uma justiça que "não é sua". Ele descreve o paradoxo: a alma é chamada a renunciar à justiça própria — uma justiça que é vista, sentida e fruto de seu próprio trabalho, jejum e oração — em favor da justiça de Cristo, que é externa, invisível e recebida unicamente pela fé na promessa de Deus. É a troca do que é conhecido e tangível pelo que é crido. Para a mente carnal, isso é loucura. Requer uma profunda humilhação da alma para descartar aquilo que se "sente" como mérito e descansar completamente em uma justiça alheia, recebida como um dom imerecido.
2.3. Uma Nova Motivação para a Obediência
A lei da graça não anula a obediência, mas a restabelece sobre um fundamento inteiramente novo. Utilizando a análise de Owen de Efésios 2:8-10, vemos uma mudança de paradigma radical. A antiga motivação, implícita na lei das obras, era: "fazer boas obras para ser salvo". O evangelho inverte essa lógica: "fazemos boas obras porque somos salvos". A salvação pela graça, recebida pela fé, torna-se a causa, e não o efeito, da obediência. Como Owen afirma, "Deus, salvando-nos pela graça, designou, por essa razão, que andássemos em obediência". As obras deixam de ser uma tentativa de pagar uma dívida e se tornam uma expressão de gratidão por uma dívida já cancelada.
2.4. A Aceitação da Fraqueza e do Sofrimento
A submissão à lei da graça culmina em dois princípios que esmagam o orgulho. Não são pontos distintos, mas facetas da mesma verdade: nossa total dependência de Cristo. Primeiro, a graça nos chama para realizar os maiores deveres — negar a si mesmo, tomar a cruz, morrer para o mundo — enquanto estamos plenamente persuadidos de nossa absoluta fraqueza para realizar o menor deles. O propósito de Deus é nos levar a depender totalmente da força suprida em Cristo, de modo que nossa fraqueza se torne o palco para a demonstração do Seu poder. Segundo, e como consequência direta, a lei da graça exige que o crente aceite a aflição mais aguda acompanhando a obediência mais estrita. O sofrimento nos conforma ao "Capitão da nossa salvação", que foi aperfeiçoado através do que padeceu. A humildade, portanto, equipada pela consciência de sua própria fraqueza, aceita o sofrimento como um meio de comunhão com Cristo. Esta foi a prova que o diabo estava convencido de que Jó falharia, mas na qual, pela graça, ele perseverou para a glória de Deus.
Somente uma alma que se humilhou para receber uma justiça imerecida (a lei da graça) pode encontrar a força para se submeter a um sofrimento que, aos seus próprios olhos, parece igualmente imerecido (a lei da providência).
3. A Prova da Humildade: Submissão à Lei da Providência de Deus
Por que os justos sofrem? Por que o mundo parece estar em caos? Estas não são questões meramente filosóficas, mas angústias profundas da alma que caminha com Deus. A resposta de John Owen não reside em decifrar o mistério, mas em se submeter humildemente à "lei da providência". Owen define esta lei como a execução do decreto eterno de Deus no tempo — Sua soberana disposição sobre todos os assuntos do mundo. Devido à aparente confusão, variedade e angústia nas dispensações de Deus, o crente deve humilhar sua alma a essa lei, submetendo-se não apenas à graça de Deus em Sua Palavra, mas também à soberania de Deus em Suas obras.
3.1. Navegando o Inescrutável
Com base nos argumentos de Owen, as obras da providência são frequentemente impenetráveis à razão humana. Ele ecoa o salmista ao descrever os juízos de Deus como um "grande abismo" e Seu caminho como um "caminho no mar", cujas "pegadas não se conheceram" (Salmos 36:6; 77:19). Os passos de Deus não são traçados para que possamos compreendê-los. Owen aponta para figuras bíblicas como Jó, Davi e Jeremias, homens de fé profunda que, no entanto, lutaram intensamente com a aparente injustiça e o mistério das ações de Deus. Eles questionaram, lamentaram e contenderam, revelando a tensão inerente entre a fé na bondade de Deus e a experiência de um mundo onde os justos sofrem e os ímpios prosperam.
3.2. Curvando-se à Soberania, Sabedoria e Justiça Divinas
Para navegar neste mar inescrutável da providência, Owen argumenta que devemos nos humilhar e aquietar nossa alma diante de três atributos divinos fundamentais:
- Soberania: Este é o princípio de que Deus, sendo infinitamente maior que o homem, "não presta contas de seus assuntos" (Jó 33:13). Ele possui o direito absoluto de fazer o que Lhe apraz com o que é Seu. A alma humilde cessa de contender e, como Jó, coloca a mão sobre a boca, reconhecendo que Deus é Deus. A paz não vem de receber respostas, mas de se curvar à autoridade dAquele que não precisa dá-las.
- Sabedoria: Embora não possamos ver como, a humildade confia que a sabedoria infinita de Deus está orquestrando todas as coisas para o bem daqueles que O amam. Nossos pensamentos, diz Owen, estão "confinados a um compasso muito estreito", enquanto Deus tem uma "perspectiva da totalidade". A fé não se ancora em nossa capacidade de entender o plano, mas na certeza de que o Planejador é infinitamente sábio.
- Justiça: A justiça de Deus, argumenta Owen, muitas vezes não é discernível em eventos isolados, mas será plenamente manifesta no juízo final. Deus governa todas as coisas com uma retidão perfeita, mesmo que isso pareça o contrário em nossa perspectiva limitada. A humildade nos leva a suspender nosso próprio julgamento e a confiar que "o Juiz de toda a terra não fará senão justiça?" (Gênesis 18:25).
A verdadeira paz, portanto, não é encontrada em decifrar os enigmas da providência, mas em se submeter humildemente à soberania, sabedoria e justiça do Providente.
4. A Prioridade Suprema: Por que Andar Humildemente é o Nosso Maior Interesse
John Owen posiciona o ato de "andar humildemente com Deus" não como mais um dever em uma longa lista de obrigações religiosas, mas como o "grande e mais valioso interesse dos crentes". Esta prática transcende todas as outras preocupações, sejam elas o acúmulo de conhecimento teológico, a obtenção de status ou mesmo a mera profissão religiosa externa. É a preocupação central da alma, o eixo em torno do qual toda a vida cristã deve girar, pois é o fim para o qual fomos criados e redimidos.
4.1. O Fim Principal: Glorificar a Deus
Uma caminhada humilde é o principal meio pelo qual os crentes glorificam a Deus neste mundo. Owen demonstra isso através de vários ângulos:
- A Doutrina da Graça: Uma vida transformada de orgulho para humildade e de egoísmo para serviço "adorna" a doutrina do evangelho. Quando o mundo observa os frutos da graça na vida de um crente, a mensagem do evangelho é validada e tornada gloriosa.
- O Poder da Graça: A transformação de um pecador rebelde em um santo humilde exibe o poder sobrenatural da graça de Deus de uma forma que nenhum milagre externo pode igualar, fazendo "o lobo... morar com o cordeiro".
- A Justiça de Deus: A obediência paciente dos santos em meio ao sofrimento serve como um "sinal manifesto do justo juízo de Deus" (2 Tessalonicenses 1:5), testificando ao mundo que há um reino vindouro pelo qual vale a pena sofrer.
- O Reino de Deus: Uma vida de humildade e santidade é o meio mais eficaz para a propagação do reino de Deus. É o testemunho silencioso e poderoso que abre corações e vence a resistência do mundo.
4.2. O Prazer Divino e a Conformidade com Cristo
A excelência desta caminhada é demonstrada por dois argumentos irrefutáveis de Owen:
- O Deleite de Deus: Citando Isaías 57:15 e 66:1-3, Owen mostra que, embora Deus habite "no alto e santo lugar", Ele também escolhe habitar "com o contrito e humilde de espírito". Deus se deleita nesta disposição de coração, enquanto Seu desprezo é reservado para os orgulhosos, independentemente de quão impressionantes sejam suas performances religiosas.
- Conformidade com Cristo: O chamado supremo de Cristo em Mateus 11:29 não é para imitar Seus milagres, mas Seu coração: "Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração". Owen enfatiza que a verdadeira conformidade com Cristo consiste principalmente nesta disposição interior de humildade, e não em atos espetaculares.
4.3. A Futilidade das Alternativas
Em um contraste contundente, Owen expõe a vaidade das outras preocupações que consomem a vida das pessoas, mesmo as religiosas. Ele nos convida a considerar a futilidade de buscar como fim último:
- Riquezas e status mundano: buscas vãs, incertas e inúteis para a eternidade.
- Conhecimento e erudição: que, sem humildade, apenas "incham" e afastam a alma de Deus.
- Mera profissão religiosa externa: Owen adverte que esta é a alternativa mais perigosa. O perigo não reside nos deveres religiosos em si, que são ordenados, mas em descansar neles como a substância da fé. Isso, diz ele, pode ser falsificado, é inútil para o mundo e, o mais trágico de tudo, é o "caminho mais rápido para um homem se enganar a si mesmo para a eternidade".
Fica claro que, em comparação com a realidade substancial de uma caminhada humilde com Deus, todas as outras buscas são "uma coisa de nada".
Conclusão: O Único Interesse Necessário
A mensagem central de John Owen, destilada de sua profunda exposição de Miquéias 6:8, é de uma clareza pastoral avassaladora: a principal preocupação da alma do crente não deve ser sua riqueza, reputação, conhecimento ou dons, mas apenas e tão somente se ele está ou não andando humildemente com Deus. Todas as outras questões são secundárias e transitórias. Esta é a única que possui peso eterno. É neste caminho de submissão à lei da graça e à lei da providência que a alma encontra sua verdadeira paz em meio às tempestades da vida, seu consolo mais profundo nas aflições e sua genuína fecundidade para a glória de Deus. Que cada um de nós faça desta caminhada seu negócio diário, sua principal ocupação e seu mais valioso interesse, pois nela, e somente nela, a vida cumpre seu propósito mais elevado.
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