Juízes 16.19–31
Imagine um homem empurrando, todos os dias, uma enorme pedra
montanha acima, apenas para vê-la rolar de volta. Sem fim, sem avanço. Esse é
Sísifo, personagem da mitologia grega que, para o filósofo Albert Camus,
representa a vida sem sentido: trabalho sem fruto, esforço sem transcendência.
Camus conclui: “É preciso imaginar Sísifo feliz.” Mas será mesmo?
As Escrituras nos apresentam outro homem, real, não
mitológico. Seu nome é Sansão. Um herói separado desde o ventre, consagrado a
Deus, juiz em Israel. Mas agora, vemos esse homem cego, acorrentado, humilhado,
girando um moinho no cárcere dos filisteus. Também ele gira, dia após dia,
preso num ciclo. Mas ao contrário de Sísifo, Sansão ora. E é por isso que sua
história não termina no moinho, mas na graça.
Juízes 16.19–31 registra o último capítulo da vida de
Sansão. Após anos de escolhas impulsivas e desrespeito à aliança, ele é traído
por Dalila, tem seus cabelos cortados, perde a força, é capturado, cegado e
forçado a viver como escravo. No entanto, este mesmo homem, quebrado e
derrotado, faz algo que jamais havia feito com esse coração: clama ao Senhor. E
por esse clamor, ele recupera não apenas sua força, mas o propósito de sua
existência. A vida, mesmo no fim, ganha sentido.
Sansão estava debaixo do voto de um nazireu, e quando se
despreza a aliança com Deus, a existência humana assiste à perda do sentido.
Mas quando se clama ao Senhor, mesmo no fim, ainda é possível morrer com fé e
cumprir propósito.
Sansão perdeu a sua força quando desprezou a aliança com
Deus. Dalila não fez nada além de cortar os cabelos que simbolizavam o voto de
consagração. E, com isso, “retirou-se dele o Senhor, e ele não sabia”. Aqui
está uma das frases mais tristes da Escritura: Sansão não sabia que a presença
de Deus havia partido. Ele agia como se tudo ainda estivesse em seu lugar — mas
a característica unção havia se retirado. O corpo continuava aparentemente
forte, a lembrança da força ainda presente, mas o favor de Deus estava
quebrado. Assim começa a ruína: quando pensamos que sairemos “como antes”,
mesmo após termos perdido a sensibilidade espiritual.
Depois disso, vieram as correntes e a escuridão. Sansão, já
cego por dentro, agora é cego por fora. E o moinho... o moinho gira. Uma pesada
pedra sobre a outra. Dia após dia. Um movimento circular, repetitivo, mecânico
— símbolo apropriadamente alegórico da vida sem direção, sem vocação, sem
presença de Deus. Ali está o antigo juiz de Israel, reduzido à tarefa de um
jumento, empurrando uma pedra que nunca leva a lugar algum. Muitos hoje vivem
assim: movem-se muito, mas sem avançar; produzem, mas sem frutificar. Ritmo sem
sentido. Ativismo sem presença. Cansaço sem redenção.
E, como se não bastasse, Sansão se torna espetáculo. Os
filisteus celebram a sua derrota, não como um triunfo militar, mas como uma
vitória religiosa: “Nosso deus Dagom nos entregou Sansão.” O servo do Senhor
vira brinquedo no templo de um ídolo. A patética incoerência do servo virou
munição para o escárnio dos inimigos. Aqui está o escândalo do servo em ruína:
quando o povo de Deus tropeça, o nome de Deus é blasfemado. O templo pagão ecoa
risos. A glória de Deus, zombada. Mas, ali, entre as colunas do templo, algo
começa a mudar.
Sansão ora. É, na inteira narrativa bíblica, a sua primeira
oração com quebrantamento. Ele não pede força com arrogância, nem menciona seus
feitos passados. Diz apenas: “Senhor Deus, lembra-te de mim... fortalece-me
agora, só esta vez.” Ele sabe que está quebrado. Ele sabe que é o fim. Mas ele
clama. E o Deus da aliança — que já havia se retirado — agora responde. O
templo cai. Uma missão de juízo é cumprida. E o texto conclui: “Foram mais os
que matou na sua morte do que em toda a sua vida.” Não é um elogio à violência.
Naquele estágio da revelação e dos propósitos redentores de Deus, é uma
declaração de propósito: a morte de Sansão foi redentora, enquanto sua vida foi
errante.
Essa história nos leva a perguntas profundamente pastorais: Como romper os ciclos vazios que giramos longe de Deus? E será possível cumprir a missão mesmo depois da queda?
A resposta começa quando paramos de fingir força e
reconhecemos nossa fraqueza real. Muitos de nós estamos como Sansão antes do
corte: presumindo presença onde onde já reina o desprezo pela aliança. Fingimos
que está tudo como antes — mas a força já se foi. Em seguida, precisamos
enxergar a cegueira que nos aprisiona em ciclos. Monótonos e cansativos. A vida
sem Deus vira moinho: gira, mas não avança. Repetimos padrões, hábitos, pecados
— como um cativo empurrando o peso da própria história.
Mais ainda: é preciso perceber que ao espezinhar a aliança
nos tornamos espetáculo para o mundo. O servo de Deus, quando vive de forma
incoerente, se torna objeto de escárnio. A nossa derrota vira zombaria. O mundo
não se comove — se diverte. Mas há esperança. Tudo muda quando clamamos ao
Senhor que ainda ouve o quebrado. O clamor de Sansão não foi bonito, nem um
tratado teológico. Foi sincero. E Deus ouviu. Porque a maior graça não responde
ao mérito, mas triunfa em rendição. E por fim, aprendemos que a missão ainda
pode ser cumprida — mesmo depois da queda, se houver um sincero arrependimento
fruto da graça de Deus. A história não precisa acabar no moinho.
Essas verdades nos fazem lembrar da história de John Newton.
Criado em lar cristão, rebelou-se, afundou-se em pecado, viveu como negociante
de escravos no Atlântico, endurecido e blasfemo. Até que, numa tempestade,
clamou. E foi ouvido. Tornou-se pastor, mentor de libertadores, autor de um
maravilhoso hino que diz: “Eu era cego, mas agora vejo.” Essa frase, que resume
Newton, poderia ter sido de Sansão.
Mas há um sublime contraste maior, que não devemos nos
esquecer neste momento. Cristo não morreu como Sansão, entre inimigos, mas
pelos inimigos. Não destruiu um templo — restaurou o verdadeiro santuário. Não
girou um moinho, mas carregou a cruz, e por ela rasgou o véu. Nele, a vida
ganha sentido, mesmo quando tudo parece perdido. Nele, a morte não é derrota,
mas coroamento da missão.
A escravidão, o escárnio, a falta de sentido, o nome de Deus
vilipendiado… Que ninguém aqui aceite viver no moinho, nem morrer sem clamar.
Cante como Newton.
Viva — e morra — com o sentido restaurado pela graça de
Deus.
Gilson Santos
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