segunda-feira, 22 de setembro de 2025

O Moinho, o Clamor e a Graça (Jz 16.19-31) | Gilson Santos

Juízes 16.19–31
 
Imagine um homem empurrando, todos os dias, uma enorme pedra montanha acima, apenas para vê-la rolar de volta. Sem fim, sem avanço. Esse é Sísifo, personagem da mitologia grega que, para o filósofo Albert Camus, representa a vida sem sentido: trabalho sem fruto, esforço sem transcendência. Camus conclui: “É preciso imaginar Sísifo feliz.” Mas será mesmo?
 
As Escrituras nos apresentam outro homem, real, não mitológico. Seu nome é Sansão. Um herói separado desde o ventre, consagrado a Deus, juiz em Israel. Mas agora, vemos esse homem cego, acorrentado, humilhado, girando um moinho no cárcere dos filisteus. Também ele gira, dia após dia, preso num ciclo. Mas ao contrário de Sísifo, Sansão ora. E é por isso que sua história não termina no moinho, mas na graça.
 
Juízes 16.19–31 registra o último capítulo da vida de Sansão. Após anos de escolhas impulsivas e desrespeito à aliança, ele é traído por Dalila, tem seus cabelos cortados, perde a força, é capturado, cegado e forçado a viver como escravo. No entanto, este mesmo homem, quebrado e derrotado, faz algo que jamais havia feito com esse coração: clama ao Senhor. E por esse clamor, ele recupera não apenas sua força, mas o propósito de sua existência. A vida, mesmo no fim, ganha sentido.
 
Sansão estava debaixo do voto de um nazireu, e quando se despreza a aliança com Deus, a existência humana assiste à perda do sentido. Mas quando se clama ao Senhor, mesmo no fim, ainda é possível morrer com fé e cumprir propósito.
 
Sansão perdeu a sua força quando desprezou a aliança com Deus. Dalila não fez nada além de cortar os cabelos que simbolizavam o voto de consagração. E, com isso, “retirou-se dele o Senhor, e ele não sabia”. Aqui está uma das frases mais tristes da Escritura: Sansão não sabia que a presença de Deus havia partido. Ele agia como se tudo ainda estivesse em seu lugar — mas a característica unção havia se retirado. O corpo continuava aparentemente forte, a lembrança da força ainda presente, mas o favor de Deus estava quebrado. Assim começa a ruína: quando pensamos que sairemos “como antes”, mesmo após termos perdido a sensibilidade espiritual.
 
Depois disso, vieram as correntes e a escuridão. Sansão, já cego por dentro, agora é cego por fora. E o moinho... o moinho gira. Uma pesada pedra sobre a outra. Dia após dia. Um movimento circular, repetitivo, mecânico — símbolo apropriadamente alegórico da vida sem direção, sem vocação, sem presença de Deus. Ali está o antigo juiz de Israel, reduzido à tarefa de um jumento, empurrando uma pedra que nunca leva a lugar algum. Muitos hoje vivem assim: movem-se muito, mas sem avançar; produzem, mas sem frutificar. Ritmo sem sentido. Ativismo sem presença. Cansaço sem redenção.
 
E, como se não bastasse, Sansão se torna espetáculo. Os filisteus celebram a sua derrota, não como um triunfo militar, mas como uma vitória religiosa: “Nosso deus Dagom nos entregou Sansão.” O servo do Senhor vira brinquedo no templo de um ídolo. A patética incoerência do servo virou munição para o escárnio dos inimigos. Aqui está o escândalo do servo em ruína: quando o povo de Deus tropeça, o nome de Deus é blasfemado. O templo pagão ecoa risos. A glória de Deus, zombada. Mas, ali, entre as colunas do templo, algo começa a mudar.
 
Sansão ora. É, na inteira narrativa bíblica, a sua primeira oração com quebrantamento. Ele não pede força com arrogância, nem menciona seus feitos passados. Diz apenas: “Senhor Deus, lembra-te de mim... fortalece-me agora, só esta vez.” Ele sabe que está quebrado. Ele sabe que é o fim. Mas ele clama. E o Deus da aliança — que já havia se retirado — agora responde. O templo cai. Uma missão de juízo é cumprida. E o texto conclui: “Foram mais os que matou na sua morte do que em toda a sua vida.” Não é um elogio à violência. Naquele estágio da revelação e dos propósitos redentores de Deus, é uma declaração de propósito: a morte de Sansão foi redentora, enquanto sua vida foi errante.

Essa história nos leva a perguntas profundamente pastorais: Como romper os ciclos vazios que giramos longe de Deus? E será possível cumprir a missão mesmo depois da queda?

A resposta começa quando paramos de fingir força e reconhecemos nossa fraqueza real. Muitos de nós estamos como Sansão antes do corte: presumindo presença onde onde já reina o desprezo pela aliança. Fingimos que está tudo como antes — mas a força já se foi. Em seguida, precisamos enxergar a cegueira que nos aprisiona em ciclos. Monótonos e cansativos. A vida sem Deus vira moinho: gira, mas não avança. Repetimos padrões, hábitos, pecados — como um cativo empurrando o peso da própria história.
 
Mais ainda: é preciso perceber que ao espezinhar a aliança nos tornamos espetáculo para o mundo. O servo de Deus, quando vive de forma incoerente, se torna objeto de escárnio. A nossa derrota vira zombaria. O mundo não se comove — se diverte. Mas há esperança. Tudo muda quando clamamos ao Senhor que ainda ouve o quebrado. O clamor de Sansão não foi bonito, nem um tratado teológico. Foi sincero. E Deus ouviu. Porque a maior graça não responde ao mérito, mas triunfa em rendição. E por fim, aprendemos que a missão ainda pode ser cumprida — mesmo depois da queda, se houver um sincero arrependimento fruto da graça de Deus. A história não precisa acabar no moinho.
 
Essas verdades nos fazem lembrar da história de John Newton. Criado em lar cristão, rebelou-se, afundou-se em pecado, viveu como negociante de escravos no Atlântico, endurecido e blasfemo. Até que, numa tempestade, clamou. E foi ouvido. Tornou-se pastor, mentor de libertadores, autor de um maravilhoso hino que diz: “Eu era cego, mas agora vejo.” Essa frase, que resume Newton, poderia ter sido de Sansão.
 
Mas há um sublime contraste maior, que não devemos nos esquecer neste momento. Cristo não morreu como Sansão, entre inimigos, mas pelos inimigos. Não destruiu um templo — restaurou o verdadeiro santuário. Não girou um moinho, mas carregou a cruz, e por ela rasgou o véu. Nele, a vida ganha sentido, mesmo quando tudo parece perdido. Nele, a morte não é derrota, mas coroamento da missão.
 
A escravidão, o escárnio, a falta de sentido, o nome de Deus vilipendiado… Que ninguém aqui aceite viver no moinho, nem morrer sem clamar.

Clame como Sansão.
Cante como Newton.
Viva — e morra — com o sentido restaurado pela graça de Deus.

Gilson Santos

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