sábado, 7 de dezembro de 2013

A Ideia da Teologia Sistemática | Cornelius Van Til

Cornelius Van Til

Nossa preocupação nesta obra é com a teologia da maneira que é entendida no Cristianismo pelo crente ortodoxo. A visão ortodoxa do Cristianismo encontra sua expressão mais consistente na fé reformada. A pressuposição do Deus antecedente e autossuficiente e sua infalível revelação de si mesmo ao homem na Bíblia é fundamental a tudo que é ortodoxo. A teologia sistemática busca oferecer uma apresentação ordenada do que a Bíblia ensina sobre Deus.

Teologia, portanto, não deve ser definida como a ciência da religião. É verdade que muitas vezes é definida assim até mesmo por teólogos reformados. A.A. Hodge escreveu: “Teologia, em seu sentido mais amplo, é a ciência da religião”. Todavia, considerando o que o termo religião veio a significar em tempos modernos, seria infeliz confundir a teologia moderna não cristã com a teologia ortodoxa ao falar da teologia como a ciência da religião. Religião, segundo definições modernas (por exemplo, na literatura ligada a “psicologia da religião”), não tem qualquer relação com o Deus das Escrituras. Os homens dizem que conseguem obter melhor o “testemunho nativo” da religião quando deixam a questão da referência objetiva completamente de fora. Mas como o Cristianismo alega ser a verdadeira religião, segue-se que nela a referência objetiva é de importância primordial. É sobre o Deus das Escrituras que queremos obter informação.

Isso não significa que queremos obter informação somente sobre Deus. Significa que é primariamente sobre Deus que nós falamos. Queremos saber tudo o que Deus deseja que saibamos sobre qualquer coisa. A Bíblia tem muito a dizer sobre o universo. Mas é a ciência e a filosofia que lidam com essa revelação. Indiretamente até mesmo a ciência e a filosofia devem ser teológicas. As Escrituras também são cheias de informação sobre nossa salvação e sobre muitas coisas que nos diz respeito. Tudo o que as Escrituras dizem sobre o homem e particularmente tudo que dizem sobre a salvação do homem é em todo caso para a glória de Deus. Nossa teologia deve ser centrada em Deus porque toda nossa vida deve ser centrada em Deus.

Da mesma forma, há muito nas Escrituras sobre Cristo. Depois da entrada do pecado no mundo, Cristo é o único meio pelo qual Deus pode ser conhecido. Ele não é simplesmente o meio pelo qual podemos conhecer mais sobre o Pai em contraste com outras maneiras que pode ser conhecido. É por ele somente que podemos ir ao Pai. Além disso, Cristo é Deus então conhecê-lo é equivalente a conhecer o Pai. Apesar de tudo isso, é preciso reconhecer que a obra de Cristo é o meio para um fim. Mesmo quando pensamos no fato de que Cristo é a segunda pessoa da Trindade, precisamos ainda assim lembrar que é com a completa Divindade que nos relacionamos e, em ultima análise, queremos obter informação. Assim, a teologia é primariamente centrada em Deus e não simplesmente centrada em Cristo.

É bom chamar a atenção para a relação entre a teologia sistemática e as outras disciplinas teológicas. O nome teologia sistemática não sugere que as outras disciplinas teológicas não façam seu trabalho sistematicamente. Significa que é somente a teologia sistemática que busca oferecer a verdade sobre Deus conforme revelada na Escritura como um todo, como um sistema unificado.

A exegese analisa cada parte das Escrituras detalhadamente. A teologia bíblicaorganiza o fruto da exegese em varias unidades e traça a revelação de Deus na Escritura em seu desenvolvimento histórico. Expõe a teologia de cada parte da Palavra de Deus, conforme ela chegou até nós em diferentes estágios, por meio dos diferentes autores. A teologia sistemática usa os frutos do trabalho da teologia bíblica e exegética e une tudo em um sistema concatenado. Aapologética busca defender este sistema de verdade bíblica contra a falsa filosofia e a falsa ciência. A teologia prática busca demonstrar como pregar e como ensinar este sistema de verdades bíblicas. A história eclesiástica traça a recepção deste sistema de verdade no decorrer dos séculos.

Quanto à questão da enciclopédia teológica, há muitos debates entre teólogos reformados. Aqui só trataremos de um ponto deste debate: a relação entre a teologia sistemática e a apologética. Quanto a isso, o Dr. Benjamim Warfield, e com ele a “escola Princeton” de teologia, difere do Dr. Abraham Kuyper, do Dr. Herman Bavinck e da “escola Holandesa” de teologia.

A diferença principal está na natureza da apologética. Warfield diz que a apologética como disciplina teológica precisa estabelecer as pressuposições para a teologia sistemática, como a existência de Deus, a natureza religiosa do homem e a verdade da revelação histórica de Deus conforme ele nos deu nas Escrituras. Em contraste a isso, Kuyper diz que a apologética deve buscar somente defender aquilo que lhe é dado na teologia sistemática. Warfield argumenta que se fossemos seguir o método de Kuyper, nós estaríamos primeiro explicando o sistema cristão pra depois nos perguntarmos se porventura nós estávamos lidando com fatos ou com fantasia. Kuyper argumenta que se nós permitirmos que a apologética estabeleça as pressuposições da teologia, nós estamos praticamente atribuindo ao homem natural a capacidade de compreender a verdade do Cristianismo e com isso teríamos negado a doutrina da total depravação.

Não podemos nem precisamos entrar nos detalhes deste debate. A essência da posição de Kuyper, de que precisamos sempre nos lembrar da distinção entre a mente regenerada e a mente não regenerada, não precisa significar que a apologética tem que sempre vir depois da teologia sistemática e ser sempre negativa. Apologética pode muito bem vir primeiro e pressupor o sistema geral da verdade conforme a exposição da teologia sistemática. É verdade que a melhor apologética só pode acontecer quando o sistema da verdade é bem compreendido. Mas também é verdade que o sistema da verdade não é bem compreendido até que seja analisado como em oposição a um erro. O desenvolvimento da teologia sistemática aconteceu, em grande escala, pela oposição ao erro. Portanto, as duas disciplinas são interdependentes.

Por outro lado, acreditamos que a essência da posição de Kuyper em relação à Warfield é correta. Warfield frequentemente fala como se a apologética precisa usar um método de abordagem ao homem natural que as outras disciplinas não precisam nem podem usar. Ele raciocina como se a apologética possa estabelecer a verdade do Cristianismo como um todo por um método diferente das outras disciplinas porque é somente a apologética que não pressupõe Deus. É como se as outras disciplinas tivessem que esperar até que a apologética tenha terminado seu trabalho para dela receber os fatos da existência de Deus, etc. Acreditamos que esta distinção entre o método da apologética e o método das demais disciplinas é errada. Todas as disciplinas precisam pressupor Deus, mas, ao mesmo tempo, a pressuposição é a melhor prova. A apologética toma as dores pra demostrar que este é o caso. Este é seu objetivo principal. Mas ao fazer isso, a apologética não é neutra da mesma forma que as outras disciplinas não são. Um de seus principais objetivos é demonstrar que a neutralidade é impossível e que ninguém, na realidade, é neutro. Concluímos então que a apologética se posiciona na beirada do circulo da verdade sistemática que nos é dada pela teologia sistemática, com o objetivo de defendê-la.

Alguns teólogos preferem o termo teologia dogmática, enquanto outros preferem falar em teologia sistemática. Não é uma questão de grande importância. Alguns preferirem o termo dogmática porque parece expressar melhor a ideia de que nesta disciplina estamos lidando com os dogmas ou verdades da Igreja. Isso levanta a questão da relação entre a teologia sistemática e as confissões da Igreja. A teologia sistemática lida primariamente com estas confissões? Ou devemos dizer que a teologia sistemática lida primariamente com os dogmas ou verdades da Escritura? Basicamente, todos os principais teólogos reformados concordam que os dogmas da Igreja são derivados das Escrituras. Assim, é verdade que em ultima instância, a teologia sistemática busca expor o sistema de verdade dado nas Escrituras. Somente depois que muito trabalho foi feito nas Escrituras por teólogos sistemáticos que a Igreja foi capaz de formular seus dogmas. Os credos da Igreja são, em relação ao conteúdo, afirmações igualmente sistemáticas da verdade da Escritura. A diferença em relação à declaração sistemática sobre a Escritura dada pela teologia sistemática é (a) que são declarações breves, limitados da maneira que são às questões mais essenciais; (b) que possuem autoridade, já que foram oficialmente aceitos como padrões por concílios da Igreja.

Uma vez que estes padrões ou dogmas da Igreja foram aceitos, um teólogo que escreve uma obra de teologia sistemática irá escrevê-la em concordância com a interpretação dada por estes padrões. Interpretar conforme estes padrões não significa que as Escrituras sejam ignoradas. Precisa ser demonstrado incessantemente que os padrões são baseados nas Escrituras. Além disso, o teólogo sistemático precisa ir além dos padrões pra ver se porventura ele consegue encontrar uma formulação mais específica das verdades mencionadas por estes padrões, e se ele consegue encontrar uma formulação das verdades das Escrituras das quais os padrões não falaram.  Assim, ele poderá dar uma pequena contribuição para o progresso da Igreja na verdade da Escritura. Credos precisam ser revisados e complementados de tempos em tempos. Mas é somente depois que a teologia sistemática progrediu além dos credos que os próprios credos podem ser revisados.

É de extrema importância entender como os credos devem ser revisados. O credo da Igreja Presbiteriana Unida, adotado em 1925, é um exemplo instrutivo de como os credos não devem ser revisados. Este credo se propõe a ser uma revisão da Confissão de Westminster. No entanto, ele transforma muitos ensinamentos específicos e precisos da Escritura, que encontramos na Confissão de Westminster, em generalizações vagas. Esse tipo de revisão de credos é pior do que inútil; é um retrocesso. A Igreja precisa de formulações mais precisas de suas doutrinas contra heresias, à medida que aparecem de maneiras novas e alteradas, e declarações mais completas da verdade bíblica. Warfield chamou a atenção para como isso é verdade em qualquer ciência, que o objetivo não é menos e sim um conhecimento cada vez mais apurado do assunto. Ele diz:

Em qualquer ciência progressiva, a possibilidade de afastamento da verdade aceita por um pensador sensato se torna cada vez menor e menor e menor, proporcionalmente à medida que a investigação e o estudo resultam no estabelecimento progressivo do número cada vez maior de fatos. O médico que trouxesse a medicina de Galeno de volta hoje não seria mais louco que o teólogo que ressuscitasse a teologia de Clemente de Alexandria.

O Valor da Teologia Sistemática

Quando falamos do valor da teologia sistemática, ou, de igual modo, do valor de qualquer outra disciplina teológica, não assumimos uma posição pragmática. A questão do valor não é o primeiro questionamento que devemos fazer. O mais importante é a questão da verdade e da obrigação. Juntar o conteúdo da Escritura em uma unidade sistemática é uma obrigação dada por Deus. É evidente que nós temos que conhecer a revelação que Deus nos dá. Mas nós não conheceríamos a revelação adequadamente se conhecemos somente as diversas partes sem juntar essas partes na relação que uma tem com a outra. É somente como uma parte da totalidade da revelação de Deus a nós que cada parte desta revelação aparece da maneira que deve. Nossas mentes precisam pensar sistematicamente. É com nossas mentes criadas por Deus, que precisa pensar sistematicamente, que precisamos retrabalhar o conteúdo da revelação.

Todavia, podemos observar que o que é simplesmente nossa tarefa dada por Deus, é, ao mesmo tempo, muito lucrativo para nossa vida espiritual. Warfield disse:

Nós não possuímos as verdades da religião de maneira abstrata; nós as possuímos somente em suas relações, e nós não conhecemos nenhuma delas nem podemos receber seu efeito completo em nossas vidas… exceto se as conhecemos em sua relação com outras verdades, isto é, sistematicamente. O que nós não conhecemos, neste sentido, sistematicamente, é roubado de metade de seu poder sobre nossa conduta; a menos que estejamos prontos pra argumentar que uma verdade terá efeito sobre nós na proporção em que ela é desconhecida. Sobre isso, é preciso dizer também que quando não conhecemos um conjunto de doutrinas sistematicamente, nós certamente chegamos à concepção errada da natureza de muitos ou poucos de seus elementos; e cogitamos que seja verdadeiro aquilo que um conhecimento mais sistemático demonstraria que é falso, de forma que nossa crença religiosa e, portanto nossa vida religiosa se torna deformada.

A unidade e o caráter orgânico de nossa personalidade exige que tenhamos um conhecimento unificado como a base de nossa ação. Se não prestarmos atenção para totalidade da verdade bíblica como um sistema, nos tornamos doutrinariamente unilateral e unilateralidade doutrinária está fadada a produzir unilateralidade espiritual. Como seres humanos, somos naturalmente inclinados a sermos unilaterais. Um tende a ser mais intelectual, o outro tende a ser mais emocional e o outro tende a ser mais ativista. Um tende a ser somente profético, o outro somente sacerdote e o outo rei. Nós devemos ser todas essas coisas ao mesmo tempo, em harmonia. Um estudo da teologia sistemática irá nos ajudar a manter e desenvolver nosso equilíbrio espiritual. Impede-nos de prestar atenção somente ao que mais nos atrai por causa de nosso temperamento.

Além disso, o que é benéfico para o crente individual é também benéfico para o ministro e consequentemente para a igreja como um todo. Alguns às vezes defendem que os ministros não precisam ser treinados em teologia sistemática se eles simplesmente conhecem suas Bíblias. Mas pregadores “treinados na Bíblia” em vez de treinados sistematicamente frequentemente pregam erros. Eles podem ter tantas boas intenções e ser tão fiéis ao evangelho em certos pontos, mas ainda assim frequentemente pregam erros. Existem muitos pregadores “ortodoxos” hoje cujo estudo das Escrituras tem sido tão limitada ao que diz sobre soteriologia que não seriam capazes de proteger o aprisco contra heresias sobre a pessoa de Cristo. Frequentemente consideram noções definitivamente heréticas sobre a pessoa de Cristo, de maneira perfeitamente inconsciente do fato.

Se levarmos isso um passo adiante, perceberemos que um estudo da teologia sistemática ajudará os homens a pregar teologicamente. Ajudará os homens a proclamarem todo o conselho de Deus. Muitos ministros nunca lidam com a maior parte da riqueza da revelação de Deus ao homem, contida na Escritura. Mas a teologia sistemática ajuda os ministros a pregarem todo o conselho de Deus e com isso fazem com que Deus seja o centro de sua obra.

A história da Igreja confirma a assertiva de que a pregação centralizada em Deus é de valor supremo para a Igreja de Cristo. Quando o ministério verdadeiramente proclama todo o conselho de Deus, a Igreja floresce espiritualmente. Também ai, é este tipo de pregação abrangente que tem guardado a Igreja do mundanismo. E por outro lado, tem guardado a Igreja de um transcendentalismo prejudicial. A pregação abrangente nos ensina a usar as coisas deste mundo porque são dons de Deus e nos ensina a possuí-las como se não possuíssemos no sentido de que devem ser usados de maneira subordinada ao único propósito supremo do homem, a saber, a glória de Deus.

É natural esperar que, se a igreja é forte porque seu ministério compreende e prega todo o conselho de Deus, então a igreja será capaz de se proteger da melhor maneira contra falsos ensinos de todo tipo. Cristãos sem doutrina facilmente caem nas mãos dos divulgadores do russelismo, espiritismo, e todas as outras cinquenta e sete variedades de heresias abundantes em nosso país. Cristãos de um texto só simplesmente não têm armas pra se defender contra estas pessoas. Eles poderão ser até capazes de citar muitos textos das Escrituras que falam, por exemplo, do castigo terno, mas o russelita será capaz de citar textos que, da maneira que soam e considerados individualmente, parecem ensinar o aniquilismo. Muitas vezes, estes cristãos de um texto só caem nas mãos da voz do sedutor.

Nós já indicamos que a melhor defesa apologética será invariavelmente feita por aquele que melhor conhece o sistema de verdade da Escritura. A luta entre o Cristianismo e o anticristianismo é, em tempos modernos, não é uma questão fragmentada. É uma luta de vida e morte entre duas cosmovisões. O ataque anticristão costuma vir até nós na forma de questões históricas ou outros detalhes. Vem até nós na forma de objeção a determinados ensinamentos da Escritura sobre, por exemplo, a criação, etc. Poderá parecer uma simples questão de perguntar quais foram os fatos. Mas por trás deste ataque detalhado está a pressuposição da metafísica não cristã da correlatividade entre Deus e o homem. Aqueles que não são treinados em teologia sistemática ficarão perdidos em como lidar com estes ataques. Ele pode ter muita habilidade para lidar com os ataques no que se refere aos detalhes, mas terá que temer sempre os novos ataques enquanto ele não remover o fundamentoda posição do inimigo.

Quanto a isso, não devemos nos esquecer de que o ministro tem uma responsabilidade cada vez maior de ser um apologista do Cristianismo. O nível geral da educação está mais alto do que jamais esteve antes. Muitos jovens ouvem da evolução nas escolas de ensino médio e nas faculdades em que seus pais nunca ouviram falar do assunto, exceto como algo longe e distante. Se o ministro quiser ajudar seus jovens, ele precisa ser um bom apologista. E ele não pode ser um bom apologista sem ser um bom teólogo sistemático.

Para concluir, devemos observar que da mesma forma que o conhecimento compreensivo do sistema da verdade na Escritura é a melhor defesa contra a heresia, também é a melhor defesa na propagação da verdade. Isso é simplesmente o outro lado do que foi dito. É improvável que um exército bem organizado será vencido por um ataque surpresa e, da mesma forma, um exército bem organizado tem uma capacidade maior de atacar o inimigo do que um exército mal organizado. Cada unidade terá o apoio e proteção do exército inteiro enquanto avança para atacar. A moral será melhor. Quando o inimigo vier com um canhão, temos que jogar uma bomba atômica contra ele. Quando o inimigo atacar os fundamentos, temos que ter a capacidade de protegê-los.

 

Por: Cornelius Van Til

Tradução: Frank Brito

Fonte: An Introduction to Systematic Theology

Extraído de: Monergismo

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