sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Não por força nem por violência | Alderi Souza de Matos

cruzadasNão por força nem por violência

Atitudes dos cristãos em relação à guerra no decorrer da história

O cristianismo teve como berço o judaísmo e a Bíblia de Jesus e dos primeiros cristãos foi o Antigo Testamento. Quanto aos temas da guerra e do uso da força, as Escrituras Hebraicas revelam duas ênfases distintas. Por um lado, o Antigo Testamento contém afirmações em apoio aos conflitos armados e está repleto de narrativas de atividades bélicas. A história de Israel parece uma infindável sucessão de guerras de maior ou menor intensidade. Ao mesmo tempo, o conceito de shalom ou paz, não somente como ausência de conflitos, mas como um estado de prosperidade em todos os aspectos, permeia as páginas de muitos livros, especialmente os dos profetas. Um exemplo muito conhecido dessa preocupação está em Isaías 2.4.

Ele julgará entre os povos e corrigirá muitas nações; estas converterão as suas espadas em relhas de arados e suas lanças, em podadeiras; uma nação não levantará a espada contra outra nação, nem aprenderão mais a guerra.

Do pacifismo à guerra justa

Em seus ensinos, Jesus deu ênfase a essa corrente pacifista do Antigo Testamento. Sua ética, expressa de maneira sublime no Sermão da Montanha (Mt 5-7), está centrada no amor, na tolerância e na não-retaliação. Em contraste com as práticas da sociedade greco-romana, Ele deixou claro que, em seus relacionamentos internos e externos, os seus seguidores deveriam caracterizar-se pela rejeição da agressividade e do espírito de vingança. Os próprios inimigos deveriam ser tratados com amor e perdão. Jesus ensinou que a causa de Deus não deveria ser promovida pelo uso da força física (Jo 18.36). Essas ênfases foram preservadas e desenvolvidas pelos apóstolos, e marcaram profundamente as primeiras gerações de cristãos.

Nos três primeiros séculos, o pacifismo foi a atitude predominante nas fileiras da igreja. É um fato notável que não há evidência da presença de cristãos no exército romano até por volta do ano 170. A partir do final do segundo século, a carreira militar passou a ser admissível para os cristãos, contanto que não envolvesse o derramamento de sangue. Deve-se observar que, durante o período da chamada Pax Romana, era possível a um homem servir por muitos anos nas legiões de Roma sem envolver-se diretamente em atividades bélicas. Todavia, em virtude do culto imperial, a maior parte dos cristãos se recusava a ingressar no exército ou ocupar cargos públicos, sendo por isso acusada de deslealdade. Eles entendiam que a única luta em que deveriam se empenhar era de natureza espiritual.

Com a adesão do imperador Constantino à fé cristã (ano 313), acelerou-se o processo de cristianização da sociedade romana nos séculos quarto e quinto. Quando os cristãos se tornaram a maioria da população, houve uma crescente pressão para que ingressassem no exército e ficou cada vez mais difícil manter a antiga posição pacifista. Na época das invasões dos bárbaros, Agostinho (354-430) deu expressão à nova mentalidade, formulando a teoria da guerra justa. A guerra seria legítima quando voltada para manter a justiça e restabelecer a paz; deveria ser empreendida pelo governante e caracterizar-se por uma atitude de amor pelo inimigo; promessas feitas aos opositores precisavam ser cumpridas; os não-combatentes deveriam ser respeitados e não deveria haver massacres, pilhagens e destruição. Desde Agostinho, alguma forma de teoria da guerra justa tem sido a posição predominante da maior parte das tradições cristãs.

A cruz e a espada

Foi somente no século 11 que se extinguiu a atitude pacífica da igreja antiga, sendo substituída pela glorificação do homem de combate, o cavaleiro medieval. Essa mudança tem sido atribuída ao influxo de povos germânicos, com seu espírito marcial. As grandes expressões dessa nova atitude foram as campanhas militares contra os muçulmanos, realizadas quase que simultaneamente em duas frentes. Na Europa central surgiram as “cruzadas”, que por quase dois séculos (1095-1291) combateram os exércitos islâmicos pela posse de Jerusalém e da Palestina. Na Península Ibérica os exércitos cristãos se empenharam por quase cinco séculos na reconquista daquelas terras das mãos dos sarracenos. Surgiu assim um cristianismo agressivo e militante que em alguns casos chegou a superar o islamismo em termos de violência e intolerância.

O cristianismo medieval testemunhou uma crescente legitimação da violência em nome de Deus. A liturgia passou a incluir a consagração das armas e estandartes de guerra. Surgiram novas ordens religiosas, como os templários, os hospitalários e os cavaleiros teutônicos, fundadas com o propósito de lutar contra os adversários da fé. Os povos ocidentais passaram a encarar os grupos que professavam outras religiões como inimigos do reino de Deus que deveriam ser destruídos ou convertidos. Era considerado errado demonstrar clemência a esses povos. Um texto favorito dos cruzados resumia essa atitude: “Maldito aquele que retém a sua espada do sangue” (Jr 48.10b).

Na Idade Média também foram aceitas com crescente naturalidade a violência e acruzadas2 guerra entre grupos cristãos. Dois exemplos são a quarta cruzada, na qual foi saqueada a magnífica cidade de Constantinopla (1204), selando-se definitivamente a separação entre as igrejas católica romana e ortodoxa grega, e a luta contra uma seita sincretista do sul da França, os albigenses, que foram destruídos por uma cruzada entre 1209 e 1229. Teólogos da época, tais como Graciano e Tomás de Aquino, criam que a guerra era uma condição necessária da sociedade e pouco se preocuparam em tratar do problema da violência.

Atitudes dos reformadores

A época do Renascimento e da Reforma Protestante (séculos 15 e 16) viu o surgimento de novas armas de guerra com grande poder de destruição, os canhões, e a ascensão de monarquias dinásticas mais poderosas e ávidas de conquistas territoriais. Humanistas cristãos, como Thomas More e Erasmo de Roterdã, condenaram as novas formas de violência. Eles observaram que Cristo não promoveu o seu reino pela força, mas pelo amor, e acusaram a igreja de se tornar uma serva obediente de príncipes ambiciosos e sanguinários.

Os reformadores aceitaram, em essência, a mentalidade dominante do seu tempo no que diz respeito ao uso da força. Lutero apoiou a violenta supressão da Revolta dos Camponeses (1524-1525) e Zuínglio morreu no campo de batalha, quando acompanhava as tropas de Zurique em luta contra os cantões católicos. As divergências religiosas da época foram uma das principais causas de muitos conflitos que assolaram o continente europeu. Na França, as guerras religiosas entre os calvinistas, conhecidos como huguenotes, e a facção católica liderada pela família Guise se estenderam por boa parte da segunda metade do século 16 (1562-1598). O pior episódio dessa confrontação foi o massacre do dia de São Bartolomeu (24-08-1572), em que milhares de huguenotes foram mortos em Paris e depois no interior da França. Todavia, nada superou em selvageria e ferocidade a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), travada em torno de uma complexa mistura de questões religiosas, políticas e econômicas, que devastou grande parte da Europa central e dizimou a sua população. O fim desse conflito, selado pelo tratado conhecido como Paz de Westfália, marcou o encerramento do período da Reforma.

A maior parte dos reformadores subscreveu o conceito de guerra justa ou de cruzada. Somente os anabatistas, também denominados reformadores radicais, foram intransigentes defensores do pacifismo, recusando-se a portar armas, prestar serviço militar ou participar de guerras. Por essa e outras razões, foram horrivelmente perseguidos. Houve apenas um caso de envolvimento de anabatistas com a violência, quando um grupo de fanáticos tomou a cidade de Münster, na Alemanha, e foi eventualmente derrotado (1535). Esse episódio reforçou o compromisso dos anabatistas com o ideal pacifista, especialmente no principal grupo que resultou do movimento, os menonitas. Outros grupos protestantes que vieram a abraçar essa atitude foram os quacres, os morávios e os irmãos.

Os séculos 19 e 20

Nos Estados Unidos, com sua história de contínuo envolvimento em guerras, as três concepções (pacifismo, guerra justa e cruzada) têm sido invocadas por diferentes grupos para defender suas posições. Um caso curioso foi a Guerra Civil (1861-1865), o mais sangrento de todos os conflitos daquela nação, em que os exércitos do Norte e do Sul partilhavam da mesma fé protestante e da mesma mescla de convicções religiosas e nacionalistas. Era comum, nos acampamentos das frentes de batalha, ouvir os combatentes de ambos os lados cantarem os mesmos hinos. A linguagem militar de diversos hinos cantados pelas igrejas evangélicas brasileiras foi inspirada pelas experiências dessa guerra. Todavia, no final do século 19, muitos cristãos do hemisfério norte se dedicaram à causa da paz, da cooperação internacional e dos esforços humanitários. Surgiram diversas sociedades pacifistas nacionais e internacionais e foram realizadas conferências preocupadas em limitar a crueldade da guerra.

Por causa de sua horrível violência e destruição, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), travada entre nações de tradição cristã, chocou profundamente as consciências. As igrejas apoiaram a guerra e o discurso de muitos líderes civis e religiosos falava em termos de uma cruzada para salvar a civilização e “tornar o mundo seguro para a democracia”. Certas pessoas chegaram a defender a destruição total da Alemanha. Já a atitude dos cristãos em relação à Segunda Guerra Mundial (1939-1945) ficou mais próxima da teoria da guerra justa.

O surgimento de ideologias totalitárias e racistas como o nazismo e o fascismo levou importantes líderes cristãos a abandonarem o seu anterior pacifismo. Dois exemplos notáveis foram o teólogo norte-americano Reinhold Niebuhr (1892-1971) e, em especial, o pastor e teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), que chegou a participar de uma conspiração frustrada para assassinar o ditador Adolf Hitler e foi executado em um campo de concentração.

As questões da guerra e da paz sempre vão representar um dilema para a consciência cristã. Isso se deve ao fato de que estão em jogo dois conjuntos de valores igualmente importantes à luz das Escrituras. De um lado, estão os imperativos evangélicos do amor, da tolerância e da solidariedade. De outro, o cristão também deve preocupar-se com as questões da justiça, da segurança e da liberdade, e com as ameaças a estes valores na forma de exploração, agressão ou dominação. O surgimento de terríveis meios de destruição em massa como a bomba atômica, a bomba de nêutrons e as armas químicas e bacteriológicas renovou o compromisso de muitos cristãos com a promoção e a manutenção da paz. Por outro lado, as violações dos direitos mais elementares de pessoas e grupos por parte de regimes e governantes extremistas fazem com que muitos cristãos se sintam atraídos para soluções mais drásticas.

É importante compreender que a questão da guerra e do uso da força se insere no contexto mais amplo da violência e agressividade do coração humano, violência essa que pode manifestar-se não só nas pessoas, mas em todos os tipos de instituições, inclusive igrejas. É imperativo que as organizações religiosas pratiquem os valores bíblicos nas suas relações internas, promovendo ativamente a justiça, a integridade e o respeito aos direitos individuais, a fim de que tenham autoridade para falar à sociedade mais ampla e ser instrumentos de reconciliação nos tempos conturbados em que vivemos.

Fonte: Revista Ultimato

Por: Alderi Souza de Matos.

O Pr. Alderi é ministro presbiteriano, doutor em história da igreja pela Universidade de Boston e historiador oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil.

Nenhum comentário:

Postar um comentário