segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Somos Capazes de Cooperar: Semipelagianos | R.C. Sproul

Embora a controvérsia pelagiana tenha terminado com a condenação de Pelágio e seus seguidores, as concepções de Agostinho não foram universalmente aceitas em todos os seus detalhes. A oposição a alguns elementos do pensamento de Agostinho surgiu, primeiramente, na África do Norte. Alguns monges do monastério de Adrumetum, na África do Norte, fizeram uma objeção à visão de Agostinho da predestinação e à sua visão de que o homem caído é moralmente incapaz de se inclinar à graça de Deus. As questões levantadas nesse debate induziram Agostinho a escrever On Grace and Free Will e On Rebuke and Grace. Essas obras foram respondidas pelo abade do monastério, Valentino, de uma forma respeitosa e cordial.

Como a discussão continuava na Africa do Norte, uma oposição mais violenta aos pontos de vista de Agostinho estourou na França, particularmente no sul, em Massilia. Os amigos de Agostinho, Hilary e Próspero, o informaram a respeito dessa oposição e o persuadiram a escrever uma resposta. Agostinho assim o fez nas suas duas últimas obras, On the Predestination of the Saints e On the Gift of Perseverance. Nessas obras, Agostinho tratou seus críticos de forma mais gentil do que fez com Pelágio, considerando-os irmãos na fé. Essa atitude antecipou a aura das futuras controvérsias. Essencialmente, tanto os agostinianos quanto os semipelagianos tendem a considerar o pelagianismo como uma heresia tão séria a ponto de chamá-lo de não-cristão, enquanto a controvérsia em vigor entre os agostinianos e semipelagianos é um debate intramural entre crentes. Embora os temas envolvidos sejam tidos como completamente sérios por ambos os lados, não são considerados tão sérios a ponto de serem essenciais para a fé cristã.

O porta-voz do partido semipelagiano foi João Cassiano, abade do monastério de Massilia. Ele é tão identificado com o semipelagianismo que este, algumas vezes, é chamado de cassianismo. Cassiano curvou-se diante do mistério inescrutável dos decretos de Deus e foi relutante em investigar profundamente a questão da predestinação. Sua principal preocupação era salvaguardar a universalidade da graça de Deus e a responsabilidade moral real do homem caído.

Quando uma controvérsia teológica surge, é sábio parar um pouco e perguntar, “Quais são os interesses?”. Tendo em foco os interesses de ambas as partes na disputa, criamos uma atmosfera na qual ambos os lados podem ser ouvidos imparcialmente. Os lados freqüentemente descobrem que compartilham interesses, mas têm diferentes modos de lidar com eles ou enfatizam diferentes áreas de importância. Por exemplo, Agostinho claramente tinha um forte desejo de manter a primazia da graça divina e da soberania. Os semipelagianos queriam preservar as mesmas verdades, mas eram também profundamente preocupados com a liberdade e a responsabilidade humanas assim como com a disponibilidade universal da graça salvadora.

Quando os interesses mútuos são declarados e mesmo quando ambos os lados compartilham certos interesses, isso não resolve automaticamente a questão. Encontrar pontos de concordância pode melhorar a atmosfera da discussão e fornecer uma base para a confiança mútua entre os contendores.

E, então, a discussão deve prosseguir finalmente para as questões nas quais os lados diferem.


O Semipelagianismo de Cassiano


As preocupações de Cassiano e de seus seguidores abrangem o que se segue:

1. As concepções de Agostinho são novas e representam um afastamento dos ensinos dos pais da igreja, especialmente Tertuliano, Ambrósio e Jerônimo. O próprio Cassiano foi aluno de Crisóstomo.

2. O ensino de Agostinho sobre a predestinação “mutila a força da pregação, reprovação e energia moral,... imerge os homens no desespero”, e introduz “uma certa necessidade fatal”. (1)

3. As fortes concepções de Agostinho não são necessárias para refutar as heresias de Pelágio e fugir delas.

4. Embora a graça de Deus seja necessária para a salvação e assista a vontade humana no fazer o bem, é o homem, não Deus, quem deve desejar o que é bom. A graça é dada “a fim de que aquele que começou a desejar, seja assistido”, não para dar “o poder de desejar”.(2)

5. Deus deseja salvar todas as pessoas e a propiciação da expiação de Cristo está disponível a todos.

6. A predestinação baseia-se na presciência divina.

7. Não há “um número definido de pessoas a serem eleitas ou rejeitadas”, desde que Deus “deseja que todos os homens sejam salvos, porém nem todos os homens são salvos”.(3)

Cassiano escreveu doze livros investigando as lutas e virtudes da vida monástica. No Collationes patrum, ele detalha suas diferenças tanto com Pelágio quanto com Agostinho. “Nessa obra, especialmente no décimo terceiro Colóquio, ele rejeita decididamente os erros de Pelágio e afirma a pecaminosidade universal dos homens, a introdução desta por meio da queda de Adão e a necessidade da graça divina para cada ato individual”, escreve Philip Schaff. “Mas, com referência evidente a Agostinho, sem o mencionar, ele combate as doutrinas da eleição e da operação particular e irresistível da graça, as quais estavam em conflito com a tradição da igreja, especialmente com a teologia oriental e com o seu próprio legalismo asceta sério”. (4)

Cassiano enfatizou a realidade tanto da pecaminosidade humana quanto da responsabilidade moral do homem. Ele manteve que o pecado de Adão é uma doença hereditária. Desde a queda de Adão tem havido um infirmitas liberi arbitrii.(5) Cassiano afirma a doutrina do pecado original na qual o homem é decaído em Adão. Mesmo o livre-arbítrio de Adão foi infectado pela queda, pelo menos a um grau que é agora “débil”. A vontade não foi destruída e nem ele é moralmente impotente de forma completa. Aqui, Cassiano rejeita o ponto de vista de Agostinho sobre a incapacidade moral da vontade em se inclinar para o bem ou para Deus.

Completamente contra Pelágio, Cassiano insistiu que a graça e necessária para a justiça. Essa graça, no entanto, é resistível. Porque para ser efetiva, a vontade humana deve cooperar com ela. Cassiano estava essencialmente preocupado aqui em manter que somos incapazes de fazer qualquer bem sem a ajuda de Deus e que o nosso livre-arbítrio deve ser ativo.

Adolph Harnack resume a visão de Cassiano:

“A graça de Deus é a base da nossa salvação; cada começo deve ser traçado por ela, porquanto ela proporciona a chance da salvação e a possibilidade de se ser salvo. Mas essa é a graça exterior; a graça interior é a que se apodera do homem, aclara, purifica, santifica e penetra tanto na sua vontade quanto na sua inteligência. A virtude humana não pode crescer nem ser aperfeiçoada sem essa graça — logo, as virtudes dos pagãos são muito pequenas. Mas o início das boas decisões, bons pensamentos e fé — entendidos como a preparação para a graça — pode ser devido a nós mesmos. Conseqüentemente, a graça é absolutamente necessária para alcançarmos a salvação final (perfeição), mas não tanto para dar a partida. Ela nos acompanha em todos os estágios do nosso crescimento interior, e as nossas manifestações não são úteis sem ela (libero arbitrio semper co-operatur); mas ela apenas apóia e acompanha aquele que realmente se esforça... mesmo essa... ação da graça não é irresistível".(6)

Na visão de Cassiano, a diferença-chave com Agostinho se encontrava na graça irresistível. Para Agostinho, a vontade do homem, embora ainda capaz de fazer escolhas, é moralmente incapaz de se inclinar em direção ao bem. A vontade não é espiritualmente débil, mas espiritualmente morta. Apenas a graça eficaz de Deus pode liberar o pecador para crer. A diferença entre Agostinho e Cassiano é a diferença entre monergismo e sinergismo no começo da salvação. Cassiano e o semipelagianismo são, com relação ao passo inicial do pecador em direção à salvação, decididamente sinergísticos. Deus torna sua graça disponível ao pecador, mas o pecador deve, com sua vontade débil, cooperar com essa graça a fim de ter fé ou para ser regenerado. A fé precede a regeneração. Para Agostinho, a graça da regeneração é monergística. Isto é, a iniciativa divina é uma condição prévia necessária para a fé.

Quando Agostinho diz que a graça é irresistível, ele quer dizer que ela é eficaz. Ela é uma obra monergística de Deus que realiza o que ele pretende que ela realize. A graça divina muda o coração humano, ressuscitando o pecador da morte espiritual para a vida espiritual. A graça regeneradora faz com que o pecador deseje crer e se aproxime de Cristo. Anteriormente, o pecador não desejava e não estava inclinado a escolher Cristo, mas agora ele não apenas deseja, mas está ansioso por escolher Cristo. O pecador não é arrastado a Cristo contra a sua vontade ou forçado a escolher algo que não quer escolher. A graça divina da regeneração muda a disposição do coração de forma a levantar o pecador da morte para a vida, da incredulidade para a fé.

Essa concepção é claramente monergística no ponto inicial do movimento do pecador da incredulidade para a fé. O processo todo, no entanto, não é monergístico. Uma vez dada a graça operante da regeneração, o resto do processo é sinergístico. Isto é, depois da alma ter sido mudada pela graça irresistível ou eficaz, a própria pessoa escolhe Cristo. Deus não faz a escolha por ela. É a pessoa que crê, não Deus que crê por ela. De fato, o resto da vida cristã de santificação se revela num modelo sinergístico.

Há muita confusão sobre o debate entre o monergismo e o sinergismo. Quando o agostinianismo é definido como monergístico, devemos nos lembrar de que ele é monergístico com relação ao começo da salvação, não com relação a todo o processo. O agostinianismo não rejeita todo o sinergismo, mas rejeita um sinergismo que é todo sinergismo.

Por outro lado, o semipelagianismo é todo sinergismo. Isto é, é sinergístico desde o começo. Reinhold Seeberg comenta:

A idéia de Cassiano é que a vontade humana foi, de fato, mutilada pelo pecado, mas que uma certa liberdade permaneceu nela. Por causa disso, ela é capaz de se voltar para Deus e, justamente como Deus tinha primeiramente se voltado para ela, é capaz, com a assistência da graça divina colocando a lei diante dela e infundindo o poder necessário, de desejar e fazer o que é bom. Conseqüentemente, o pecador não está mono, mas ferido. A graça surge à vista, não como operans, mas como cooperans; a ela não deve ser atribuída a atividade exclusiva, mas sinergia... Isso foi uma tentativa instrutiva de preservar a relação pessoal e espiritual do homem com Deus. Mas a tentativa da necessidade rendeu-se ao que era melhor em Agostinho — o sola gratia. (7)

Um resumo similar é oferecido por Schaff:

Em oposição a ambos os sistemas [pelagianismo e agostinianismo], ele [Cassiano] pensava que a imagem divina e a liberdade humana não haviam sido aniquiladas, mas apenas enfraquecidas pela queda; em outras palavras, que o homem estava doente mas não morto, que não podia, de fato, ajudar-se, mas podia desejar a ajuda de um médico e aceitá-la ou recusá-la quando oferecida, e que ele devia cooperar com a graça de Deus na sua salvação. À questão sobre qual dos dois fatores tem a iniciativa, ele responde de forma completamente empírica: que algumas vezes, e, de fato normalmente, a vontade humana, como nos casos do Filho Pródigo, Zaqueu, do Ladrão Penitente e de Cornélio, orienta-se para a conversão; algumas vezes a graça a antecipa e, como com Mateus e Paulo, retira a vontade resistente — porém, mesmo nesse caso, sem coerção — a Deus. Aqui, conseqüentemente, a gratia praeveniens é manifestamente negligenciada. (8)

Schaff é um pouco impreciso quando conclui que Agostinho ensinou que a queda “aniquilou” a liberdade humana. Nós nos lembramos da distinção de Agostinho entre autonomia (livre-arbítrio) e liberdade. O livre-arbítrio não foi aniquilado no sentido de que a vontade foi obliterada ou destruída. O poder moral de se inclinar para o bem é que foi aniquilado. De acordo com Agostinho, a liberdade foi aniquilada, não o livre-arbítrio. Para Cassiano, a graça que Deus dá ao pecador, com a qual o pecador deve cooperar para ser salvo, é essencialmente a graça da iluminação ou instrução. A conversão é efetivada deste modo: “...quando ele observa em nós o início de uma boa vontade, [Deus] imediatamente a ilumina, conforta e incita rumo à salvação, conferindo um aumento sobre o que ele mesmo implantou ou viu surgir a partir de nosso próprio esforço”.(9) O ponto crucial é que o início da salvação depende de um movimento inicial de boa vontade dentro do pecador caído. Deus concede a assistência da graça àqueles que fazem esse bom movimento inicial. Para Agostinho, nenhum pecador pode fazer esse bom movimento inicial a não ser que Deus primeiramente o liberte.

Resistência ao Semipelagianismo

Contra a obra de Cassiano, o amigo de Agostinho, Próspero de Aquitaine, escreveu um livro sobre graça e liberdade em 432. Cassiano teve como aliados o monge Vicente de Lerins, Fausto de Riez, Genádio de Massilia e Arnóbio. O debate continuou a vociferar por décadas. O semipelagianismo venceu na Gália nos Sínodos de Arles (471) e Lyons (475). Enquanto isso, o agostinianismo foi sendo atenuado pelos sucessores de Agostinho. Em 496, o papa Gelásio 1 sancionou os escritos de Agostinho e Próspero e condenou os de Cassiano e Fausto. O debate alcançou o seu clímax em 529 no Sínodo de Orange, o qual condenou o sistema do semipelagianismo. Schaff fornece uma lista das proposições cruciais estabelecidas pela igreja no Sínodo de Orange:

• O pecado de Adão não prejudicou apenas o corpo, mas também a alma do homem.

• O pecado de Adão trouxe o pecado e a morte sobre a humanidade.

•A graça não é meramente conferida quando oramos por ela, mas é a própria graça quem nos faz orar por ela.

• Até mesmo o início da fé, a disposição para crer, é efetivada pela graça.

• Todos os bons pensamentos e obras são dons de Deus.

• Mesmo os regenerados e santos precisam continuamente da ajuda divina.

• O que Deus ama em nós não é nosso mérito, mas seu próprio dom.

• O livre-arbítrio enfraquecido em Adão só pode ser restaurado pela graça do batismo.

• Todo o bem que possuímos é dom de Deus e, conseqüentemente, ninguém deveria vangloriar-se.

• Quando o homem peca, ele faz a sua própria vontade; quando ele faz o bem, ele executa a vontade de Deus, mas voluntariamente.

• Com a queda, o livre-arbítrio foi tão enfraquecido que sem a graça preveniente ninguém pode amar a Deus, crer nele ou fazer o bem em nome de Deus....

• Em cada boa obra, o início não procede de nós, mas Deus inspira em nos a fé e o amor a ele, sem mérito precedente de nossa parte, para que desejemos o batismo e, após o mesmo possamos, com a sua ajuda, cumprir a sua vontade.(10)

A igreja Católica Romana estava claramente rejeitando a visão de que o ponto de partida da fé é a vontade caída. A capacidade para fazer o bem procede da graça, a graça concedida na regeneração. Deve ser notado aqui que, tanto quanto em Agostinho, a graça da regeneração é efetivada pelo sacramento do batismo. A regeneração batismal foi, mais tarde, categoricamente rejeitada pelos calvinistas e também pela maioria do outros protestantes.

A predestinação e a graça irresistível foram mais ou menos omitidas nos pronunciamentos dos sínodos. A igreja adotou um caminho mais agostiniano do que pelagiano. Alguns têm referido-se a ele mais como semiagostinianismo do que semipelagianismo, achando-o mais próximo de Agostinho do que de Cassiano.
Por: R.C. Sproul
NOTAS:

1. Reinhold Seeberg, Text-Book of the History of Doctrines, vol. 1, History of Doctrines in the Ancient Church, trad. por Charles E. Hay (1905; Grand Rapids: Baker, 1977), p. 369.

2. Ibid.

3. Ibid.

4.Philip Schaff, History of the Christian Church, 8 vols. (1907-10; Grand Rapids: Eerdmans, 1952-53), 3:861.

5.Seeberg, History of Doctrines, 1:370. Seeberg cita João Cassiano, Collationum, 3.12.

6.Adolph Harnack, History of Dogma, parte 2, livro 2, trad. por James MilIar (1898: Nova York: Dover, 1961), p. 247.

7.Seeberg, History of Doctrines, 1:37 1-72.

8. Schaff, History of the Christian Church, 3:861.

9.João Cassiano, Collationum, 13.8, 7. Citado por Seeberg, History of Doctrines, 1:371.

10.Schaff, History of the Christian Church, 3:867, 869.


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Fonte: Sola Gratia – A controvérsia sobre o livre-arbítrio na História. – R.C.Sproul
Editora Cultura Cristã – 1a Edição – 2001 – 3.000 exemplares – Tradução: Mauro Meister
Extraido do: Monergismo.com

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