Capítulo 3 | Erros sobre a Humilhação a Serem
Cuidadosamente Evitados
Pelo que já foi dito, você pode
perceber quais os erros a serem cuidadosamente evitados com relação à sua
humilhação, e com que cuidados ela deve ser buscada.
(1) Um erro com o qual você deve
tomar cuidado, é o de não encarar a humilhação como algo irrelevante, ou como
apenas um apêndice à fé, que pode ser dispensado. Não pense que uma alma não
humilhada, enquanto tal, pode ser santificada. Alguns corações carnais supõem
que apenas os pecadores mais atrozes precisam ser contristados e ter o coração
quebrantado, mas que isto não é necessário para eles, que foram criados
descente e religiosamente desde a mocidade. Mas é tão possível ser salvo sem fé
e sem arrependimento quanto sem esta humilhação especial, a qual eu já
descrevi, e que é parte da sua santificação.
(2) Outro erro a ser
cuidadosamente evitado é o de colocar a sua humilhação somente ou
principalmente na parte emocional, ou nas expressões externas dessas emoções.
Eu me refiro tanto a uma dor aguda, como à tristeza de coração, ou ainda às
lágrimas. Mas você deve se lembrar que o valor dela, como eu disse antes, está
na sua reação ao julgamento e na vontade. Não é o grau de uma tristeza ou
angústia de sentimentos que mostrará melhor o grau de sinceridade da sua
humilhação, e muito menos as suas lágrimas ou expressões exteriores. Mas é a
baixa avaliação que você faz de si próprio, e a aceitação em ser visto como vil
aos olhos dos outros. É o seu descontentamento, e o desejo de gemer e chorar
por causa do pecado o tanto quanto Deus gostaria que você o fizesse, juntamente
com a aceitação do julgamento e vontade antes descritos que demonstram
realmente a sua humilhação.
Há dois grandes perigos aqui,
diante de você, a serem evitados. Há alguns que podem ter terríveis angústias
de tristeza, e estão a ponto de arrancar os próprios cabelos, sim, e até mesmo
de darem um fim a si próprios, como Judas, por causa do horror da sua
consciência; e isto poderia lhes parecer que eles teriam verdadeira humilhação.
Mas mesmo assim não a têm. Alguns podem chorar abundantemente em um sermão, ou
em uma oração, ou ao mencionar seus pecados a outros, e, portanto, pensar que
estão realmente humilhados; mas ainda assim podem não estar. Pois, se ao mesmo
tempo, seu coração ama o pecado e prefere apegar-se a ele do que se livrar
dele, ou não tem um ódio habitual pelo pecado e um amor predominantemente muito
maior a Deus, a sua humilhação nada tem a ver com a obra de salvação. Os seus sentimentos
e as suas lágrimas podem até ser forçados contra a sua vontade. Se você não
deseja realmente odiar o pecado, os sentimentos e as lágrimas dificilmente
significariam mais do que uma graça comum.
Muitos podem chorar por causa dos
sentimentos, e por causa da natureza feminina sensível, e ainda assim
permanecerem não humilhados, podendo até estar em um grau muito elevado de
orgulho. Quão regularmente vemos tantos que são assim! As mulheres,
especialmente, podem chorar mais em um culto ou conversa, do que alguém que
está realmente quebrantado poderia fazê-lo em toda a sua vida, e ainda assim
estarem tão longe de se verem vis aos seus próprios olhos e desejarem ser
vistas assim aos olhos dos outros que elas odiarão, reprovarão e criticarão
todos aqueles que as acusarem com as faltas que elas mesmas parecem se
lamentar. Também, ao serem acusadas de horrendos pecados, estas pessoas se
desculparão e suavizarão seus pecados, fazendo deles assunto de menor
importância e se apegando àqueles que tenham um alto conceito delas. É assim
que o pecado reina regularmente em seus corações: manifesta-se nas suas
palavras e vidas; faz com que odeiem aqueles que com fidelidade as reprovam; e
que vivam em contenda com qualquer um que venha a desonrá-las, apesar de todas
as lágrimas que caem dos seus olhos. Assim, portanto, não julgue pelos
sentimentos, ou apenas pelas lágrimas, mas pela reação aos julgamentos e pela
vontade, como foi dito acima.
Um outro caso, que é muito melhor
e mais feliz do que o primeiro, mas que produz grande dificuldade, é o erro
daqueles que pensam que não têm uma verdadeira humilhação por não
experimentarem tais sentimentos e liberdade de lágrimas como outros
experimentam quando o coração deles é contristado, pois não conseguem derramar
sequer uma lágrima.
Diga-me apenas isto: “Você se vê
como vil aos seus próprios olhos por ser culpado de pecados, e isto contra o
Senhor, a quem você realmente ama? Você odeia os seus pecados, por causa das
suas abominações, e desejaria de coração sofrer quando estivesse pecando? E se
você tivesse que escolher de novo, você preferiria sofrer do que pecar? Você
sente o desejo de se entristecer por causa do pecado mesmo quando não pode
sentir tristeza, e deseja chorar, ainda que não consiga? Pode você suportar
calmamente quando é ofendido, porque sabe que é realmente vil? É você grato a
um reprovador sincero, apesar dele lhe mostrar o mais terrível pecado? Você
considera as suas próprias palavras e feitos indignos, e as palavras e feitos
dos outros melhores, desde que haja a menor razão para isso? Você atribui
justiça às aflições que vêm de Deus e às reprimendas verdadeiras de homens, e
se considera indigno da comunhão dos santos, ou de ver a justiça de Deus se Ele
viesse a condená-lo?”
Este é o estado de uma alma
humilhada. Se você puder responder afirmativamente a estas perguntas, então não
precisa duvidar da sua aceitação por parte de Deus, mesmo que você não derrame
uma lágrima. Há mais humilhação em uma baixa estima de nós mesmos do que em mil
lágrimas, e mais em uma vontade ou desejo de chorar pelo pecado do que nas
lágrimas que vêm motivadas pelo terror, por uma consciência pesada, ou pelos
sensíveis sentimentos naturais. Se a vontade estiver correta, você não precisa
temer. É aquele que mais odeia o pecado e é mais severo para com o pecado que é
humilhado por causa dele. Aquele que lamenta o pecado hoje e o comete amanhã é
muito menos humilhado e penitente do que aquele que não é atraído para o pecado
na esperança dos prazeres do mundo, nem o comete, mesmo que fosse para salvar
sua vida.
(3) Para evitar isto alguns
incorrem no erro oposto e pensam que a tristeza e lágrimas são desnecessárias,
e que podem se arrepender com ou sem lágrimas. Estes, fundamentam tudo em
alguns desejos vagos e ineficazes; e assim, pensam que o coração foi mudado.
Mas certamente Deus não criou os sentimentos em vão. É impossível que um homem
possa ter uma vontade santificada e as suas emoções não manifestem alguma
correspondência, e sejam controladas pela vontade. Embora não possamos gemer naquele
grau que desejaríamos, ainda assim terá de haver alguma tristeza sempre que o
coração for verdadeiramente mudado, e, aparentemente, esta tristeza deveria ser
grande. Ninguém pode crer de coração que o pecado é o maior mal para sua alma
sem ser afligido por isto. Na verdade, os nossos sentimentos mais vivos
deveriam ser afetados por estas coisas tão importantes. É uma vergonha ver um
homem gemer por um amigo e lamentar por uma provação, que afeta apenas a carne,
e, no entanto, ser tão insensível à praga do pecado, à ira do Senhor, e sorrir
e gracejar com tais pesos sobre a sua alma.
Embora a tristeza e as lágrimas
não sejam o coração e a parte principal de nossa humilhação, ainda assim elas
devem ser buscadas como um dever. Sim, certo grau de tristeza é absolutamente
necessário, e a falta de lágrimas não é um bom sinal naqueles que as derramam
por outras coisas. Na verdade, a convicção da nossa loucura e crueldade deveria
ser tão grande a ponto de quebrar o nosso coração de tristeza, derreter o nosso
peito, e produzir rios de lágrimas dos nossos olhos. Se nós não podemos
produzir isso em nós, devemos antes lamentar a dureza do nosso coração, ao
invés de nos desculparmos.
(4) Neste item, trataremos de
como responder à questão, se é possível a um homem ser humilhado e se
arrepender em demasia.
A manifestação exterior da
humilhação, que consiste nos atos que provêm do entendimento e da vontade, não
podem ser maiores do que o próprio entendimento e a vontade que produziram
estes atos. Se as manifestações externas forem maiores do que a própria
vontade, elas não apenas serão erradas como também nada terão a ver com a
verdadeira humilhação salvadora. Um homem pode se considerar pior do que ele
realmente é, pensando falsamente de si mesmo como se ele fosse culpado de
pecados dos quais realmente ele não é; e isto não é a mesma coisa que
verdadeira humilhação. Mas, se ele tiver uma clara apreensão da maldade do seu
pecado e da sua própria vileza, a isto ele não deve temer.
No âmbito da vontade é mais
claro: nenhum homem pode estar querendo livrar-se do pecado em demasia, nem ter
a mesma aversão ao pecado quanto o próprio Senhor o tem. Mas, quanto à outra
parte da humilhação que consiste em aguda tristeza ou lágrimas, pode muito bem
ocorrer em demasia, embora eu conheça muito poucos que incorrem neste erro ou
precisem temer isso, pois o homem normal do mundo é estúpido e duro de coração,
e até a maioria dos piedosos são lamentavelmente insensíveis.
Ainda assim, há alguns poucos que
necessitam desse conselho, a fim de que não se agonizem em grau excessivo de
tristeza. Permita que o seu coração se disponha o mais possível contra o
pecado, mas permita também algum limite às suas tristezas e lágrimas. Este
conselho é necessário aos seguintes tipos de pessoas: (1) Às pessoas
melancólicas, as quais estão em perigo de serem perturbadas, e agirem de modo
irracional e sem propósito por excessiva tristeza. Seus pensamentos são fixos,
confusos, sombrios, escuros e cheios de temores, e acabam tornando as coisas
piores do que já são, sendo mais profundamente afetadas por estes sentimentos
do que suas cabeças podem suportar. (2) Este é o caso também de algumas
mulheres fracas de espírito, as quais não são melancólicas, mas ainda assim,
por fraqueza natural de seus cérebros e por serem altamente sensíveis, não têm
condições de suportar estas comoções sentimentais sérias e profundas que outros
podem desejar, pois a profundidade da sua sensibilidade e a intensidade das
suas paixões representam um perigo de serem lesadas pelos seus julgamentos, e
serem facilmente lançadas à melancolia, ou a algo ainda pior.
Ser destituído da razão é uma das
grandes calamidades corporais nesta vida, e isto seria um grande problema tanto
para a própria pessoa como para os que a cercam. Trata-se de uma questão de
vergonha e desonra para o Evangelho aos olhos dos ímpios que não entendem o
caso. Quando eles vêem alguma tristeza excessiva e desmesurada, ou alguém cair
em perturbação, isto representa uma grande tentação para que fujam da religião,
evitem a tristeza que vem de Deus e todos os pensamentos sérios a respeito das
coisas celestiais. Faz com que os tolos escarnecedores digam que a religião
torna o homem maluco, e que esta humilhação e conversão para as quais os
conclamamos é o caminho para fazê-los perder o juízo. Assim sendo, por causa da
tristeza dos piedosos, e do endurecimento dos impiedosos, o caso se reveste de
seriedade a ponto de requerer nosso maior cuidado em evitá-lo.
Pergunta: Mas se é tão perigoso
entristecer-se, tanto de modo insuficiente como em demasia, o que fará um pobre
pecador em tal desfiladeiro, e como pode ele saber quando deve restringir sua
tristeza?
Resposta: Há pouquíssimas pessoas
no mundo que têm razão em temer o excesso deste tipo de tristeza. A situação
geral do homem é ser insensível; a tristeza do mundo provoca muito mais
melancolia e perturbação do que a tristeza que vem de Deus. Mas, para aqueles
poucos que estão em perigo de excesso, eu primeiramente direi como discernir o
perigo e, depois, como remediá-lo.
Quando a sua tristeza é maior do
que o seu julgamento pode suportar, com aparente perigo de perturbação ou de
distúrbio melancólico e diminuição de seu entendimento, então a tristeza é
certamente demasiada e deve ser restringida. Porque se você arruinar a sua
razão, você se constituirá em opróbrio para a religião, e não estará habilitado
para nada que seja realmente bom: nem para sua edificação, nem para o serviço
do reino de Deus.
Se você estiver com uma séria
doença a qual a tristeza poderia aumentar o risco para sua vida, você então tem
razão para restringi-la; embora não deva abster-se de arrepender-se, ou
descuidar-se da sua salvação; mas, o sentimento de tristeza, esta você deve
moderar ou reduzir.
Quando a tristeza é tão grande a
ponto de transtornar a sua mente, ou enfraquecer o seu corpo, de modo a
incapacitá-lo para o serviço de Deus, e a torná-lo mais despreparado para fazer
o bem, você tem razão então para moderar e restringir a tristeza.
Quando a intensidade da sua
tristeza sobrepuja a medida necessária do seu amor, ou alegria, ou gratidão,
deixando estes de lado, apossando-se mais do seu espírito do que deveria, não
deixando espaço para os seus outros deveres, então esta tristeza é excessiva, e
precisa ser restringida. Há alguns que se esforçariam e lutariam com seus
corações para arrancar algumas lágrimas e aumentar sua tristeza, os quais,
entretanto, fazem pouco caso de outros sentimentos e não se esforçariam a
metade para aumentar sua fé, amor e alegria.
Quando o seu sofrimento, por
causa da sua intensidade, o conduz à tentação ou ao desespero, ou a pensar que
Deus e o Seu serviço são duros demais, ou a desvalorizar Sua graça e a
satisfação de Cristo, como se fossem deficientes e insuficientes para você,
neste caso, você tem razão para moderar e restringir o sofrimento.
Quando a sua tristeza é
inoportuna e a vontade precisa de impulso em momentos quando você é conclamado
à gratidão e à alegria, você tem então razão em moderá-la e restringi-la
durante estas épocas. Não que devamos eliminar toda tristeza, seja qual for o
dia de alegria ou gratidão, a menos que possamos suprimir todos os nossos
pecados nos deveres daquele dia. Também não devemos suprimir todo conforto
espiritual e prazer nos dias de maior humilhação. Porque assim como o nosso
estado aqui é um misto de graça e pecado, assim também todos os nossos deveres
religiosos devem ser um misto de alegria e tristeza. É apenas no céu que
teremos alegria absoluta, assim como é apenas no inferno que há tristezas
absolutas, ou, pelo menos, em nenhum estado de graça. Mas, por enquanto, por
causa disso tudo, há épocas agora quando um destes sentimentos deve ser
exercido de modo mais preponderante, e o outro em menor grau. Em tempos de
calamidades, por exemplo, e após uma queda, nós somos tão conclamados à
humilhação que o conforto deveria apenas moderar nossas tristezas, e o seu
exercício deveria estar submisso nestas épocas. Assim também em épocas de
especial misericórdia da parte do Senhor nós podemos ser conclamados a
exercitar nossa gratidão, louvor e alegria tão preponderantemente que a
tristeza deve nos manter humildes, e ser, por assim dizer, serviçal às nossas
alegrias.
Quando graça e misericórdia são
mais eminentes, então a alegria e o louvor deveriam ser predominantes, o que se
verifica com mais freqüência em uma vida cristã que anda erguida a
cuidadosamente com Deus. Quando pecado e julgamento são mais eminentes, a tristeza
deve então ser predominante, visto ser um meio necessário para uma sólida
alegria. Assim sendo, normalmente um pecador que ainda está passando pela obra
de conversão, e é recém-chegado a Deus de um estado de rebelião, deve estimular
mais tristeza, e se dar mais a gemidos e lágrimas do que posteriormente, quando
for trazido à reconciliação com Deus, a andar com integridade.
Pergunta: Mas quando é, por outro
lado, que eu posso saber que a minha humilhação é pequena demais, e que deveria
me esforçar para aumentá-la?
(1) Quando, aparentemente, não há
os perigos acima mencionados, quais sejam de destruir seu corpo, perturbar sua
mente, transformar suas faculdades, afogar as outras graças, deveres, etc. Não
havendo estes perigos você tem pouca razão de temer o excesso.
(2) Quando você não se humilhou o
suficiente para levá-lo a valorizar o amor de Cristo, a ter estima pelo Seu
sangue e seus efeitos, a ter fome e sede Dele e de Sua justiça e a mendigar
ardentemente pelo perdão de seus pecados. Então você tem razão de desejar mais
humilhação. Se você não sente grande necessidade de Cristo, mas passa por Ele
tão desinteressadamente, como o estômago cheio passa pela comida, como se você
pudesse passar muito bem sem Ele, então você pode estar certo de que precisa ser
mais quebrantado. Se você não é tão movido pelo amor de Deus, a ponto de se
desvencilhar de qualquer coisa para gozá-Lo, e de não considerar nada mais
querido do que os céus, você necessita ficar sob convicção dos seus pecados e
miséria um pouco mais, e de implorar ao Senhor que o salve do seu coração de
pedra. Se você pode ouvir do amor e dos sofrimentos do seu Redentor sem ferver
de amor por Ele novamente, e pode ler ou ouvir as promessas de graça, sobre os
dons de Cristo, e sobre a vida eterna sem nenhuma considerável alegria ou
gratidão, é tempo de implorar a Deus por um coração mais humilhado.
(3) Quando há muitos altos e
baixos na obra da sua conversão, e você fica às vezes num bom estado, e
novamente num mau estado, como se ainda estivesse irresoluto quanto a se deve
mudar ou não; quando você hesita diante dos termos que Cristo estabelece quanto
à autonegação, à crucificação da carne, e a abandonar tudo pela esperança da
glória, e acha estas coisas duras, e está ainda considerando se deveria submeter-se
a elas ou não, ou está ainda reservando secretamente alguma coisa para você
mesmo. Isto tudo certamente mostra que você ainda não foi suficientemente
humilhado, caso contrário você não estaria agindo tão levianamente para com
Deus. Ele ainda deve colocar os seus pecados diante de você, e segurá-lo por um
pouco sobre o fogo do inferno, e fazer soar em sua consciência tal estampido, a
ponto de fazer com que você se submeta e acabe com suas dúvidas, e o ensine a
não mais procrastinar com seu Criador.
O próprio Faraó ficava submisso e
insubmisso a Deus, e às vezes deixava Israel ir, às vezes não, sendo necessário
que Deus o humilhasse com praga sobre praga, até fazê-lo submeter-se e ficar
até feliz em permitir que o povo partisse. Mesmo quando Deus usa dos meios de
graça, quando o coração é duro, Ele faz tanto uso das tristezas quanto seja
necessário para fazer com que o homem se submeta o mais cedo possível aos Seus
termos e se alegre em obter misericórdia em tais termos.
(4) Quando você está insensível e
desanimado quanto às ordenanças de Deus e a Escritura tem pouca vida ou doçura
para você; quando se encontra quase que indiferente se invoca a Deus em secreto
ou não, se vai à igreja ou não para ouvir a Palavra e unir-se em louvor a Deus
na comunhão dos santos; quando não sente grande gosto nos cultos e nos
sacramentos, mas pratica-os quase que meramente por costume, ou para aliviar a
sua consciência, e não por uma grande necessidade que sinta dessas práticas, ou
do bem que encontra nelas. Isto mostra, por certo, que você carece de mais um
pouco da vara e da espora de Deus. Seu coração ainda não foi suficientemente
quebrantado, mas Deus precisa tomá-lo novamente em Suas mãos.
(5) Quando você está esquecido de
Deus, e da vida por vir, e esquece tanto dos seus pecados como do sangue do
Salvador, e coloca os seus pensamentos quase que continuamente nas vaidades a
nas coisas deste mundo, como se estivesse crescendo mais nestas coisas do que
na sua necessidade de Cristo. Isto mostra que a pedra ainda está no seu
coração, que Deus precisa fazer com que você se alimente de um cardápio mais
difícil, para corrigir os seus apetites, e fazê-lo sentir o seu pecado e
miséria até que Ele retire os pensamentos que você tem nas coisas que são na
realidade pouco importantes, e o ensine a preocupar-se mais com o seu estado
eterno. Se você começa a se esquecer do seu próprio estado e de Deus, é tempo
de ser lembrado disto.
(6) Quando você começa a sentir
mais doçura na criação, e a ser mais lisonjeado com aplausos a honras, e a
sentir mais prazer na abundância, e mais impaciência com a pobreza ou
necessidade, ou com os erros dos homens, e com as cruzes do mundo; quando você
se dedica a ser bem sucedido, e está desejoso de se tornar rico e cai de amor
pelo dinheiro; quando você se atira aos cuidados e negócios do mundo, e fica
oprimido com muitas coisas por sua própria escolha. Isto mostra, na verdade,
que você está perigosamente não humilhado. Se Deus tiver misericórdia de você,
Ele o rebaixará e fará com que a sua riqueza se torne em amargura e absinto
para você, abaterá o seu apetite e ensinará que uma coisa é realmente
necessária: “Desejar ardentemente a comida que não perece”. Ensiná-lo-á daí em diante
a escolher a melhor porção.
(7) Quando você percebe que
poderia voltar a brincar com as circunstâncias propícias ao pecado, ou a olhar
para elas com disposição na mente como se ainda tivesse a mente voltada para
isso e quase que pudesse voltar o seu coração querendo novamente aquilo; quando
você começa a ter a mente novamente voltada para suas velhas companhias e
caminhos, ou começa a se aproximar o mais possível novamente dessas coisas, e a
olhar com fixação para a isca na tentativa de provar daquilo que é proibido, e
quase que não pode dizer como negar as suas inclinações, apetites, sentimentos
e desejos. Isto mostra que você carece de uma obra de despertamento. Parece que
Deus precisa ler para você mais um pouco da Palavra, e fazer com que você soletre
aquelas linhas de sangue, as quais, ao que parece, você se esqueceu. Ele
precisa acender o fogo da sua consciência, até que você sinta e entenda se é
realmente bom brincar com o pecado, com a ira de Deus, e com o fogo eterno.
(8) Quando você começa a se
tornar indiferente com relação a sua comunhão com Deus. Você começa a não
pensar mais muito se Ele lhe aceitou realmente e se de fato lhe manifestou o
Seu amor, mas começa a deixar de lado as suas orações e a não mais atentar para
elas ou ao que acontece com elas. Passa a fazer uso dos sacramentos raramente
questionando o resultado desta prática. Quando você pode dispensar o consolo
espiritual dos santos e extrai pouco conforto espiritual de Cristo e dos céus,
e cada vez mais dos seus amigos, bens, prosperidade e situações materiais,
talvez comece a sentir-se tão bem na companhia de pessoas do mundo, falando e
agindo como elas, com a mesma satisfação que antes tinha ao meditar no amor de
Cristo. Isto mostra que você ainda não tem um real senso do perigo que corre. A
humilhação ainda tem uma grande obra a realizar em você. Você precisa ser
ensinado a conhecer mais a sua casa, a ter mais prazer em seu Pai, a conhecer
mais o seu marido, seus irmãos em Cristo, mais a sua herança, do que os
estranhos ou inimigos de Deus e seus.
(9) Quando você começa a fazer
pouco caso das ordenanças ou de outras misericórdias, e ao invés de recebê-las
com gratidão e se alimentar delas passa a queixar-se delas, e nada lhe agrada,
dizendo: “O pastor é muito fraco”, ou “o pastor é muito exigente”, ou “o pastor
é muito formal”, “isso deveria ser desse ou daquele modo”, “o culto é muito ou
pouco formal”, “ele gesticula muito ou pouco”, “esta ordem não está boa”, “isto
ou aquilo não é apropriado”. Isto tudo mostra que você carece ser humilhado, e
que você está mais preparado para a vara do que para o alimento. Se Deus
pudesse apenas abrir a porta do seu coração e mostrar claramente a maldade e o
vazio que há nele, você veria que o erro não está no pastor nem no culto, e
mesmo que houvesse erro neles, o erro maior ainda seria o seu. A causa da sua
relutância e contenda com o mundo está no seu próprio estômago cheio, e Deus
precisa lhe dar um remédio, que faça o seu coração doer antes que Ele termine a
Sua obra. Então o seu apetite será corrigido, a sua frivolidade terá fim, e
aquilo que você antes criticava passará a lhe ser doce.
(10) Quando você começa a tufar
de orgulho, a pensar muito alto de si mesmo, a ter bons conceitos sobre o seu
próprio talento e desempenho, ter prazer em ser notado e visto como alguém que
desponta entre os piedosos, e não pode suportar ser esquecido ou ser deixado de
lado. Quando você considera os talentos e desempenho dos outros inferiores em
comparação com os seus, se considera tão sábio quanto seus mestres e passa a
ouvi-los como se fosse juiz deles, com espírito de julgamento, e achando que
poderia fazer tão bem quanto eles. Quando você começa a encontrar falta naquilo
que deveria estar lhe nutrindo, e não encontra nada em cada sermão a não ser
defeitos, e a acha que não cometeria tais erros. Quando você deseja
veementemente ser seu próprio mestre e se considera mais habilitado a pregar do
que a aprender, a dirigir do que ser dirigido, a responder do que a perguntar.
Quando você pensa tão bem de si mesmo que a igreja não é mais boa nem pura o
suficiente para sua companhia, embora Cristo não seja ali negado, e você não
seja ali induzido a pecar. Quando você se torna crítico e passa a agravar mais
e mais a falta dos outros, diminuindo as suas virtudes. Pode ver um cisco nos
olhos dos outros, mas não consegue discernir as virtudes deles, a não ser que
sejam altas como uma montanha, e ninguém pode passar por piedoso ao seu
julgamento, a não ser os santos mais eminentes. Quando você passa a desejar
veementemente as novidades na religião e a se achar mais sábio do que a igreja
presente e antiga, e se considera excepcional por não ser como os demais.
Quando você não pode ouvir nem este nem aquele pastor, embora sejam na verdade
ministros de Cristo. Quando você fica batendo sempre na mesma tecla: “Saí
dentre eles, e separai-vos deles”, como se Cristo houvesse chamado você a sair
da igreja, quando na verdade o chama a sair da companhia dos infiéis. Tudo isso
indica que você necessita de mais humilhação.
Você tem um inchaço que precisa
ser aberto para permitir que o ar saia e ele seque. Para que você não venha a
se perder, para que não venha a ser abandonado por Deus e ser entregue a si
mesmo, você precisa ser trazido à humilhação novamente com um testemunho.
Quando Deus lhe revirar e lhe mostrar que você é um pobre, miserável, cego e
nu, e que está inchado sem razão e se enchendo de si mesmo, Ele fará você parar
diante daqueles que você despreza. Ele fará você se considerar indigno da
comunhão com aqueles que antes você julgava indignos de você. Fará com que se
considere indigno de ouvir aqueles pastores aos quais você antes virava as
costas. Ele jogará por terra o seu ensino, coisas tolas, e o tornará feliz em
ser ensinado de novo. Numa só palavra, por meio da conversão Ele o fará
novamente como criança, ou você nunca entrará no reino dos céus.
Este orgulho espiritual é uma
doença lamentável, e consiste em algo excessivamente triste. Para muitos, é o
prelúdio de condenação e apostasia. Deus os entrega aos seus próprios conceitos
e à sabedoria que eles tanto estimam, até que estes os levem à perdição. E
dentre aqueles que são curados, há muitos que o são da maneira mais triste,
pois é comum Deus deixá-los sozinhos até que se lancem a erros abomináveis ou
caiam em algum pecado vergonhoso e escandaloso, até que se tornem objeto de
escândalo e comentários entre os homens. Esta vergonha e confusão podem,
entretanto, despertá-los, a fim de que venham a compreender o que foi que os
tornou tão orgulhosos, e a reconhecerem que não passam de simples vermes.
Desse modo eu mostrei quando é
que você deve buscar uma humilhação mais profunda, e quando pode concluir que
ainda não foi suficientemente humilhado. Sim, quando uma humilhação em maior
grau é necessária à sua alma.
Pergunta: Bem, mas ainda assim,
você ainda não nos disse que caminho um pobre pecador deveria tomar em tal
desfiladeiro, quando não sabe se sua humilhação, no que diz respeito à parte
emocional, é insuficiente ou demasiada.
Resposta: 1. Vocês mesmos podem
discernir parcialmente pelo que foi dito, se têm necessidade de mais ou menos
humilhação, apenas testando o coração por essas indicações. 2. Mas, ainda
assim, eu os aconselharia e persuadiria veementemente, em caso de dificuldade,
a recorrerem a algum ministro capaz e fiel, para uma resolução.
Se você sente que a tristeza se
apodera demasiadamente do seu espírito, que põe em perigo o seu entendimento ou
a sua saúde, especialmente se você é uma mulher sentimental ou uma pessoa
melancólica, não permaneça neste estado por muito tempo, para que a demora não
venha a fazer aquilo que não poderá ser facilmente desfeito, mas vá e converse
sobre o seu caso, e peça conselho. Esta é uma das principais funções dos
pastores: que você possa tê-los à disposição para se aconselhar com eles a
respeito das doenças e perigos da sua alma, assim como você faz com os médicos
com relação às doenças e perigos do corpo. Desvencilhe-se de toda timidez
pecaminosa, e não continue a confiar em si mesmo e nas suas habilidades, mas vá
àqueles aos quais Deus designou com superintendência sobre você para estas
situações, e conte-lhes o seu caso.
Este é o modo de Deus, e Ele
abençoará a Sua própria ordenança. Pessoas melancólicas, sensíveis e
irritadiças não são juízes habilitados para avaliar sua própria situação. Neste
caso, você deve desconfiar do seu próprio entendimento e não ser orgulhoso, nem
se agarrar obstinadamente a cada capricho que venha à sua cabeça, mas, ao
sentir a sua fraqueza, confie-se à direção dos seus fiéis ministros, até que o seu
problema seja superado, e você se torne mais capaz de discernir por você mesmo.
Outro erro do qual você será aqui
alertado é o de pensar que a tristeza e as lágrimas são desejáveis em si
mesmas. Elas são desejáveis apenas como expressão de uma disposição sincera da
vontade, e quando elas ajudam a atingir o fim para o qual a humilhação é
designada. Assim, aqui você poderá aprender o caminho pelo qual deve buscá-las.
(1) Você não deve colocar a
ênfase da sua religião nelas, como se fôssemos chamados pelo Evangelho apenas
para uma vida de tristeza. Mas deve fazer da tristeza e das lágrimas servas da
sua fé, amor, e alegria no Espírito Santo, e de outras graças. Assim como o uso
da agulha é apenas para abrir caminho para a linha, e então é a linha, e não a
agulha, que faz a costura, assim, a nossa tristeza serve apenas como preparação
para a fé e amor, sendo estes os que unem a alma a Cristo. É, portanto, um
triste erro que alguns fiquem muito preocupados por sua falta de tristeza, mas
pouco preocupados por sua falta de fé e amor, e orem e se esforcem para quebrar
seus corações, ou chorem pelos pecados, sem, contudo, fazerem o mesmo para
obter aquelas graças maiores, às quais a tristeza deveria conduzi-los. Um
deveria ser feito sem se deixar de lado o outro.
(2) Visto que as lágrimas são uma
expressão do coração, elas deveriam ser espontâneas e sinceras, fluindo
voluntariamente do sentimento interior por causa do mal que lamentamos. Se você
vier a chorar bastante, meramente por pensar que as lágrimas são em si mesmas
necessárias, e não por causa do ódio que sente pelo pecado e pelo sentimento da
sua natureza vil e assassina, isto não tem nada a ver com a verdadeira
humilhação. Se o coração estiver humilhado diante do Senhor, não é a falta de
lágrimas que fará com que Deus o despreze. Alguns são, por natureza, tão pouco
dados ao choro que não podem chorar por nenhuma coisa externa, nem pela perda
do mais querido amigo, embora fossem capazes de fazer dez vezes mais para
salvar a vida dele do que alguns que choram à vontade. Gemidos, assim como as
lágrimas, também são expressões de tristeza, mas a rejeição e ódio sinceros ao
pecado, são evidências ainda melhores do que ambos.
Quando, entretanto, a pessoa tem
uma disposição natural para chorar, mesmo que seja por dificuldades materiais,
e ainda assim não pode derramar uma lágrima pelo pecado, aí o caso é mais
questionável.
(3) A razão principal pela qual
vocês devem se esforçar para ter uma tristeza mais profunda é para que possam
obter o fim ao qual a tristeza deveria levar: que o pecado vos seja mais odioso
e mortificado com mais efetividade; que o “eu” seja humilhado, para que Cristo
possa ser mais valorizado, desejado e exaltado, e para que você seja melhor
habilitado a uma maior comunhão com Deus no tempo por vir, seja salvo do
orgulho, e mantido vigilante.
Pelo que foi dito, você tem uma
regra pela qual pode acertadamente discernir que grau de humilhação deve ser
alcançado: ela deve ir tão profundamente a ponto de minar o nosso orgulho. O
coração deve ser tão quebrantado quanto necessário para nos afastar do pecado e
nos desvencilhar do “eu” carnal. Se isso não for alcançado, ainda que você
chore os próprios olhos, isso não valerá nada. Você precisa ser rebaixado a tal
ponto que o sangue de Cristo e o favor de Deus venham a ser mais preciosos a
seus olhos do que o mundo inteiro, e em seu próprio coração preferira antes
aqueles do que este. Aí, então, você pode estar seguro de que a sua humilhação
é sincera, quer você derrame lágrimas ou não.
Pelo que foi dito, você também
pode concluir que deve fugir da idéia de atribuir às suas próprias humilhações
qualquer valor da honra devida apenas a Cristo. Não pense que você pode
satisfazer a justiça da lei ou merecer qualquer coisa da parte de Deus pelo
valor dos seus sofrimentos, mesmo que você venha a chorar lágrimas de sangue.
Isto não será uma verdadeira humilhação, se não consistir no senso de
reconhecimento da sua indignidade e merecida condenação, e se não levá-lo a
buscar por perdão e vida em Cristo, e se não levá-lo a se ver perdido e
totalmente incapaz em si mesmo. Portanto, seria clara contradição se a
verdadeira humilhação viesse a ser tida como satisfação ou mérito, ou algo em
que confiar ao invés de Cristo.
Richard Baxter
Richard Baxter
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